As Flores de Ruanda

As Flores de Ruanda


ADELSON COSTA




Copyright © 2012 Adelson Costa
All rights reserved.
ISBN-13: 978-1535294027
ISBN-10: 1535294027







CAPÍTULOS





1
2004 — Ruanda lembra os seus mortos
Pg. 1
2
Cerca de dez anos antes — Kigali
Pg. 10
3
Os twas
Pg. 31
4
O poder hutu
Pg. 53
5
A visão
Pg. 71
6
O barro
Pg. 91
7
A intimidação
Pg. 114
8
O general hutu
Pg. 131
9
Mukono e Dancilla
Pg. 146
10
O destino de Rose Kabaguyoi
Pg. 180
11
A Frente Patriótica Ruandesa
Pg. 202
12
Um tutsi em apuros
Pg. 216
13
A frente de batalha
Pg. 228
14
Os confrontos militares
Pg. 243
15
A tutsi branca
Pg. 287
16
O genocídio
Pg. 313
17
O encontro
Pg. 339





Apresentação


Este livro é uma obra de ficção no qual todas as falas e tramas são frutos da minha imaginação. A narrativa se desenrola por sobre um fundo verídico: o genocídio de 1994 ocorrido em um pequeno país africano chamado Ruanda e, por isso, há um paralelo cronológico e factual com a realidade. Algumas autoridades da época foram inseridas ou citadas tão somente pelo valor histórico que possuem e estão em contexto ficcional. A história é narrada em primeira e terceira pessoa e preferi manter alguns termos africanos na sua escrita original, quase sempre, por não haver correspondentes apropriados em português.




— Capitão, o que faremos com tantos prisioneiros?
— Quem ficou responsável pelos suprimentos, tenente?
— Fui eu, meu senhor.
— Você estocou alimentos para esses cativos?
— Não, meu capitão.
— Não previu esta necessidade, tenente Ota Uwiragiye?
— Infelizmente, não, senhor.
— Por que não?
— Eu não imaginava que faríamos tantas capturas.
— Não acredita em seu líder?
— A este ponto não.
— O estoque da tropa deles é suficiente?
— Não, capitão.
— Temos dinheiro para comprar a comida desse povo?
— Não.
— Pretende saquear alguma estância para alimentá-los?
— Não, meu senhor.
— Tem dó dessa gente?
— Sinceramente, não.
— Então mate todos eles!
Em minutos, tenente Ota Uwiragiye formou um grande pelotão de fuzilamento e gritou:
 
— Fogo!





1 – 2004 — Ruanda lembra os seus mortos


No dia 6 de abril de 2004, eu estava novamente em Ruanda, uma pequena república soberana da África Central que faz fronteira ao norte com Uganda, ao sul com Burundi, ao oeste com o Congo (antigo Zaire) e ao leste com a Tanzânia. Era a segunda vez que visitava o país e, desta feita, com o objetivo de superar alguns traumas decorrentes da minha primeira estada dez anos antes. Aquela seria uma experiência redentora e confesso que precisei de coragem para voltar, já que iria reviver uma época do meu passado repleta de memórias desagradáveis que me marcaram profundamente.
Quando saí do país africano pela primeira vez, em 1994, meu pai me encaminhou para fazer análise com um terapeuta que era amigo da nossa família há muito tempo e foi este profissional quem me aconselhou a realizar uma segunda visita a Kigali, a capital ruandesa. Apesar de sentir que não necessitava de ajuda de terceiros para alcançar o bem-estar, decidi seguir a terapia, para atender ao desejo dele, pois o amo e aprecio quando aprova algo que faço.
O governo do Presidente Paul Kagame fez uma programação de 7 a 13 de abril de 2004 para relembrar os dez anos do terrível genocídio ruandês ocorrido de 6 de abril a 10 de julho de 1994. Este evento histórico foi uma catástrofe decorrente do massacre, corpo a corpo, de indivíduos da etnia tutsi perpetrado pelos da etnia hutu com os quais convive no país. Aproximadamente oitocentas mil pessoas foram mortas em um período de cem dias, quantidade parelha à mortandade nos cerca de 4 anos da Guerra Civil Americana, que dizimou algo em torno de 3% da população dos EUA. Segundo o meu analista, aquela seria a oportunidade certa para eu acabar de uma vez por todas com as más influências do passado. A princípio, resisti, porém ele me convenceu com o argumento de que muitos dias haviam transcorrido desde o episódio e que nós trabalhávamos o meu lado emocional já há bastante tempo. Por conta disto, eu estaria pronta para um reencontro com antigos demônios. Para que reviver o passado se já o havia superado? Será que elas incomodavam o meu presente de forma tão pungente? Eu pensava que não.
— Isabelle, se você comparecer ao evento em Kigali e retornar bem, eu falo para seu pai que você não mais precisa de mim e podemos pôr um termo às nossas seções de análise.
— Sério? Quem me dera!
Poder me livrar do meu incômodo profissional apresentou-se como um presente de grande valor e, assim, coloquei nos dois pratos da balança, de um lado o ruim e do outro a falta de uma opção melhor, e aceitei retornar à África Central.

Em Ruanda, vivem três grupos étnicos: os hutus (rutus), que formam a maioria com cerca de oitenta e cinco por cento da população; os twas (tuás) com menos de um por cento e os tutsis (tútsis) com mais ou menos quatorze por cento. Os twas foram os primeiros habitantes a chegarem à região montanhosa do atual Ruanda, por volta do século VI a.C. Em sequência, vieram, em meados do século VI d.C. os hutus e, aproximadamente, cem anos depois, os primeiros tutsis. Os twas se comunicam entre si em rukiga, sua linguagem original, todavia utilizam o kinyarwanda (kinyaruandês, ruandês), inglês e francês presentes no país.
Para melhor compreensão de alguns termos usados adiante é bom saber que no idioma rukiga, a flexão de número, singular ou plural, é feita pelos prefixos MA e BA, respectivamente. A palavra batwa (twas) é plural de matwa, assim como bahutu de mahutu e batutsi de matutsi respectivamente. Os termos twas (plural dado por tutsis, hutus e por nós mesmos) e batwa (plural no rukiga) são a mesma coisa, pois se referem a mais de um indivíduo, da mesma maneira como matwa e twa a apenas um.
Os twas são um povo pigmeu indígena de altura e peso médios de um metro e meio e quarenta e cinco quilogramas que habitam a África Central e parte da Ásia. Existem relatos da sua presença na região desde os tempos dos egípcios.
No início da formação histórica do país, os três grupos étnicos, os hutus agricultores, os tutsis pastores e os twas caçadores e extratores dos recursos das selvas coexistiram em harmonia até que a região foi colonizada pelos europeus. Ruanda, na conferência de Bruxelas, em 1890, foi dado à Alemanha. Os alemães controlaram a região até a derrota na Primeira Guerra Mundial, quando o protetorado de Ruanda foi entregue à Bélgica.
Os belgas identificaram os indivíduos por meio de cartões raciais e dividiram formalmente a população por grupos étnicos. A ação de marcar com cédulas de identidade os grupos é tida como instigadora da cisão étnica. Eles se acercaram da minoria tutsi para governar o país e discriminaram os hutus, o que acelerou a exacerbação do ódio racial.
Os hutus, entre os anos de 50 e 60 do século passado, tomaram o poder, expulsaram os belgas e massacraram os tutsis, que, aos milhares, fugiram para o exílio em países vizinhos, onde fundaram um movimento de resistência armada. Em face da morte de quase um milhão de tutsis, há um paralelo entre o genocídio ruandês e o holocausto judeu impetrado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Durante o percurso do Aeroporto Kanombe ao Hotel Mil Colinas eu não vi sequer um rosto familiar, pois a grande maioria das pessoas que conheci em 1994 fora morta ou expulsa do país. Inicialmente, eu pretendia participar de toda a semana de eventos, contudo mudei de opinião e pedi ao gerente do hotel que conseguisse uma passagem para o dia 7 de abril, de modo que eu deixasse o país logo na primeira jornada do evento. Não vi sentido em permanecer mais tempo, já que, ao pôr o pé por lá, percebi que aquela sociedade nada mais tinha a ver comigo. Achei por bem considerar cumprido o trato com o meu analista, ficando apenas dois dias. Infelizmente, porém, não estava esperançosa de conseguir um voo, visto que a cidade estava repleta de pessoas de outros países que igualmente partiriam por via aérea. Andando pelas ruas da cidade, percebia que muita gente se sentia mais ou menos assim:

Como uma garota que atira sua boneca na fogueira e nada pode fazer enquanto as chamas a consumem. Na manhã seguinte, ao remover as cinzas, constata que mais nada há do brinquedo predileto a não ser a lembrança. Então, assume uma culpa que carrega no peito a partir de então, por ter queimado uma boneca de maneira tão estúpida.

Enquanto caminhava, eu via muita gente seguindo em direção ao estádio local de futebol onde aconteceria a principal solenidade do evento. No país, quem sobreviveu ao ano de 1994 carrega a morte como fardo na memória ou a vida como dádiva por ter escapado das garras do genocídio ruandês. Muitos creditavam o fato de estarem vivos à sorte, sentiam-se como que renascidos no fatídico ano relembrado e estavam, no momento, após uma década, brindando ao batismo de uma nova oportunidade ou lamentando o aniversário de alguma história triste. Eles se olhavam e não sabiam se sorriam por estarem vivos ou se choravam pelos entes queridos mortos.
Eu me chamo Isabelle e sou uma médica americana nascida em Nova Iorque. Tenho ascendência francesa, pois os meus avós migraram da França para os Estados Unidos da América onde deram vida ao meu pai, que atualmente é um influente senador americano de forte apreço à nação francesa, em respeito à origem dos seus genitores. Por atuar em favor da agenda franco-americana, sempre teve prestígio perante o governo francês.
Eu estava, em 2004, passeando por Kigali, feliz por não ser reconhecida pela gente que passava por mim. Encontrei poucas com pessoas as quais convivera em 1994 e, em meio à multidão, comecei a temer não estar preparada para a triste recorrência do passado. Amaldiçoei o meu psicólogo por ter me mandado de volta àquele lugar, chantageando-me com o término das suas chatas seções de análise. Eu me perguntava por que não guardava a história ruim no coração, partia de volta para os EUA e dizia ao meu amigo em Nova Iorque:

Cara, eu sou maluca, contudo gosto de mim desse jeito. Não preciso dos seus serviços, tampouco da sua terapia. Portanto, deixe-me em paz com minha maluquice!

Considero-me uma boa pessoa, amigável, companheira e sensível. A minha mãe, entretanto, costumava comentar que sou valente e tenho um gênio forte sempre aceso por um pavio curto. Não costumo protelar o desfecho do que tenho de fazer de imediato e sou do tipo ou gosta de mim ou me odeia. Desde menina, sempre fui uma garota hiperativa, com uma energia acima da média e, por conseguinte, praticava quase todo tipo de esporte para o qual fosse convidada. Porém, em dois, me destaquei: nas lutas de competição e no tiro esportivo na modalidade fossa olímpica. Aprendi a atirar muitíssimo bem por influência do senador que tinha na caça o seu passatempo predileto. No entanto, quando me conscientizei de que era uma covardia atirar nos pobres patos em migração pelos banhados do Estado do Missouri, entrei para uma escola de tiro ao alvo e comecei a competir contra outros seres humanos. Em vez de abater aves inocentes, passei a quebrar, à bala, pratos ou discos de onze centímetros de diâmetro feitos de betume e calcário arremessados ao ar por incansáveis máquinas. As geringonças lançavam 75 alvos em série de 25 e, por conta disto, eram a razão de meus tormentos. Elas quase sempre me venciam, a despeito de eu quebrar um monte de pratos. Meu treinador costumava me dizer:

Caramba! Erre alguns pratos, Isabelle, senão perderei o meu emprego, por não ter mais nada que lhe ensinar. Ah! Ah! Ah!

Meu pai possuía amigos nas Forças Armadas e, entre os quais, profissionais de segurança e franco-atiradores, que executam tiros de precisão em alvos a longas distâncias. Percebendo minha habilidade, apresentou-me àquelas pessoas com as quais pratiquei por um bom tempo. Achava legal acertar um objeto a um quilômetro e meio. Tentaram me levar para os Fuzileiros Navais, no entanto, ele foi radicalmente contra.

Alto lá! Minha filha é meiga e não foi criada para atirar em seres humanos em uma porcaria de guerra.

Não participei por mais tempo de equipes americanas de tiro de competição porque outra obrigação tomou conta de quase todo o meu tempo de juventude: o curso de medicina. Chegou um momento em minha vida no qual tive de fazer uma escolha difícil e ou continuava competindo ou me tornava uma boa médica. Discuti a questão com os meus familiares e eles me aconselharam a priorizar os estudos da medicina, pois o esporte é algo efêmero e dura somente o tempo da juventude e vitalidade e, por isto, hoje sou uma boa médica. Mesmo assim, quem quer que seja objeto de uma mira em minha mão, está enrascado, se me deu motivos para apertar o gatilho a qualquer distância eu esteja. O judô, associado ao meu temperamento impulsivo, fizeram-me uma brigona quando menina e meu pai tinha o hábito de me tirar de encrencas nas escolas por onde eu passava, pois sempre brigava com os meninos da minha idade. Apesar de as meninas me acharem diferente, nunca fui uma garota má, ainda que vivesse metida em confusões. Eu era uma adversária dura nas brigas e assídua convidada às salas dos diretores das instituições de ensino nas quais eu era aceita, sem muitos obstáculos, por ser filha de um político influente.
Ao andar pela cidade, imaginava que poderia estar participando de uma linda manhã no Central Parque de Nova Iorque. Todavia, estava em Ruanda outra vez após tanto tempo. Eu passei pelo Centro Hospitalar de Kigali, o CHK, onde trabalhei em 1994 e lá estava, à sua frente, o majestoso podocarpo, um tipo de árvore que me traz muitas lembranças. Por toda a cidade, havia eventos interessantes, tais como: espetáculos de músicas, tertúlias de poesias, peças de teatros, exibições de filmes e exposições de arte a rememorarem o horror, mas também a celebrar a vitória da vida sobre a morte. O amor e a esperança de um futuro de paz e prosperidade eram a mensagem transparente em Kigali em 2004, além do apelo por justiça contra os perpetradores da carnificina.
Como haveria um evento no Amahoro National Stadium, tomei um táxi à porta do hotel pela manhã e comecei o meu trajeto para o local da cerimônia em memória ao decênio do genocídio ruandês. Saímos do hotel, passamos defronte ao Union Trade Center, dobramos à direita e pegamos uma longa estrada sem cruzamentos nem congestionamentos de trânsito. O veículo desenvolvia sua velocidade tranquilamente, o que tornou o percurso prazeroso. Eu fiz questão de sair cedo, justamente para não perder tempo no caminho até o Amahoro Stadium. Passamos pelo parlamento ruandês e seguimos viagem até chegarmos ao famoso restaurante kigalense Chez Lando, que me trouxe boas recordações. Dobramos à esquerda e nos avizinhamos do nosso local de destino. No trajeto, li a programação do evento e resolvi que sairia do Amahoro, após o pronunciamento do Presidente da República de Ruanda, Paul Kagame. Segundo o folheto em minhas mãos, que me fora dado pelo pessoal do Hotel Mil Colinas, ocorreria às doze horas e quinze minutos. Inicialmente, teríamos discursos de autoridades convidadas e depoimentos de sobreviventes. Antes da fala do presidente, aconteceria um ato de 10 minutos de silêncio em recordação aos mortos e, após, seríamos contemplados com apresentações de música e poesia e outros relatos de vítimas do genocídio. Esta seria a ocasião em que eu pretendia sair do estádio. Em outras localidades do país, ocorriam cerimônias semelhantes com a mesma finalidade.
À porta do estádio, segui as pessoas que iam em direção às arquibancadas e encontrei uma acomodação entre as 65 mil pessoas que estavam no recinto. Uma banda se apresentou para a plateia e, depois, no horário programado, o Presidente Kagame discursou emocionadamente. Em suas palavras, culpava a França, apontando os franceses como contribuintes decisivos para a ocorrência da matança e, inclusive, como circunstantes dos combates.

Eles, de caso pensado, treinaram e armaram os soldados do governo e as milícias que estavam se encaminhando para cometer o genocídio, e eles sabiam o que os hutus fariam.

O dura acusação sem meias-palavras foi suficiente para que o Ministro de Relações Exteriores do governo francês do Presidente François Miterrand, Renaud Muselier, abreviasse sua curta visita ao país. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan, conclamou-nos a fazer um minuto de silêncio, ao meio-dia local, para marcar o dia internacional de reflexão sobre o genocídio ruandês. Solicitou que as nações do mundo inteiro adotassem medidas preventivas e efetivas para que fatos daquela magnitude não voltassem a ocorrer. Houve críticas pela não participação de algumas grandes nações nos eventos patrocinados pela autoridade ruandesa. Outras, como a Bélgica e os Estados Unidos, rogaram escusas pela sua passividade diante do ocorrido em 1994.
Quando eu estava sentada em meio ao povo, julgando usufruir um confortável e desejado anonimato, um soldado que mantinha a segurança das arquibancadas do Amahoro estendeu-me um olhar atento, de modo intrigante. Olhei-me da cabeça aos pés.

O que será que ele está olhando?

Pus meus óculos escuros e, camuflada em indiferença, esperei que parasse de me observar. Cri ser inoportuna tal sondagem, pois a ocasião lutuosa não era propícia a galanteios. Infelizmente, logo após, veio em minha direção. Preparei-me para, educadamente, despedi-lo, caso viesse me inquirir com uma corte inadequada. No entanto, simplesmente me perguntou:
— A senhora é Dra. Isabelle, não é?
— Sim.
Eu lhe respondi afirmativamente, pois imaginei que seria portador de alguma informação do Hotel Mil Colinas, já que o gerente ficara de confirmar minha partida de avião à tarde e me dissera que, se conseguisse uma desistência, mandaria alguém me procurar no estádio.
— Eu a conheço do ano de 1994.
Arrependi-me de ter lhe confirmado o meu nome.
— Você está enganado e, talvez, me confunda com outra pessoa.
— Acredito que não, pois, se não bastasse a semelhança, como poderia haver outra Isabelle em Ruanda, branca e médica? Eu servi na inteligência da Frente Patriótica Ruandesa em 1994, durante minha juventude.
— Nós nunca nos vimos antes, meu rapaz, porque esta é a primeira vez que venho cá. Por favor, dê-me licença, visto que tenho de ir. Adeus!

* * * * *

Após sair do local, o militar, agora com outros colegas, continuava a observar a médica. Fazia-lhe sinais, entretanto, ela não lhe dava atenção. A americana continuou caminhando e, propositadamente, penetrou numa aglomeração para dificultar o trabalho de aproximação. Então, ele apressou-se na direção dela, temendo a perder de vista. Algo a dizia que o soldado insistente tinha por missão não a deixar escapar, para ventura dele, a cor e o aspecto de Isabelle a diferenciavam de quase todas as pessoas no estádio de futebol. O militar hutu inquiriu transeuntes no lugar.
— Vocês viram uma mulher branca passar por aqui?
— Ela seguiu em direção ao ponto de táxi.
O jovem oficial retornou para seu posto e foi dizer aos companheiros que a suspeita já fugira do Amahoro e, sendo assim, solicitou sua liberação da incumbência que julgou idiota e inoportuna, pois fora ignorado.

Ela que fosse para onde quisesse ir!

Seu superior imediato passou um rádio para o centro de comando e teve uma resposta nada agradável.
— Tenente, pelo amor de Deus, encontre a americana, imediatamente! Você não deveria ter deixado a mulher escapar, pois ela deve ser um peixe grande ou estar envolvida em algo sinistro, já que o alto-comando do exército a quer agora mesmo.
— Ela foi para o aeroporto e já deve ter partido de Ruanda.
— Pois vá lá e lace o maldito avião no ar! Se não a trouxermos de volta, serviremos em Byumba, a partir de amanhã.
— Sério, senhor?
— Você pensa que estou brincando, tenente? O próprio Ministro da Defesa acaba de me dizer isso pelo rádio. Ande logo, rapaz!
— Se ela resistir, posso atirar?
— Imagino que não, pois a querem viva. Vá atrás dela, fique atento ao rádio, por onde lhe darei instruções e não a perca de vista novamente quando a encontrar.
Ao chegar à porta do Amahoro, disseram ao tenente que a médica tinha pegado um táxi havia instantes. Ele estava inquieto porque não podia falhar na missão de captura e disto dependia seu futuro na corporação.
— Vocês viram uma bela gringa passar por aqui?
Obteve como resposta:
— Passou, apressadamente, dizendo que seu avião estava prestes a decolar.
— Para onde ela foi?
— Para o Mil Colinas e de lá, com certeza, para o Kanombe.
O tenente embalou para o aeroporto de Kigali. Ligou o rádio da viatura e passou a dizer:

Atenção, aqui é tenente Ngoma em missão de busca e captura de uma mulher americana que se encaminha para o kanombe. Se a encontrarem em outro caminho, detenham-na com cautela, pois não se sabe se é perigosa!

Cheguei ao aeroporto e me sentei em um banco à espera do horário do meu voo, pois não tinha intenção de passar mais um minuto do meu tempo no país. Tinha vindo aproveitar a oportunidade de ajustar-me ao passado e me dava por satisfeita. Nós, passageiros, fomos chamados para o avião e entrei na aeronave para, finalmente, me sentir livre e em paz interior, quando ela começou a taxiar pela pista secundária. No entanto, de repente, soldados do exército ruandês adentraram no kanombe assustando toda a gente. Indaguei-me: será uma revolução ou um golpe de estado? Eles invadiram a pista com seus veículos e impediram-nos a decolagem. Três militares armados entraram no avião, olhando de um lado para outro até me verem e caminharam ao meu encontro. Um jovem oficial se perfilou diante de mim e questionou:
— A senhora é a americana Dra. Isabelle?
— Sim, eu mesma, por quê?
— Preciso que me acompanhe, doutora.
— Por que você acha que eu farei isso?
— Meu superior deseja vê-la.
Pela insígnia no uniforme, percebi que ele era um jovem tenente, fato que me trouxe lembranças de outra pessoa que conhecera havia uma década no mesmo lugar. Então, mostrou-se surpreso, quando o interpelei utilizando sua patente no exército ruandês.
— Tenente, tenho de partir. Diga ao seu superior que o verei em outra oportunidade.
— Quem a chama é alguém especial e me incumbiu de lhe dar algo para convencê-la a aceitar o encontro.
Tenente Ngoma chamou um soldado e o mandou buscar em uma viatura do exército que estava na frente do avião uma encomenda. Este retornou com um lindo arranjo floral. O buquê não significaria muito para mim, se não constasse de antúrios, helicônias, estrelícias, gengibres e violetas-africanas. Peguei as flores e seu aroma me fez voltar dez anos no tempo. Então, lágrimas começaram a cair dos meus olhos, pois a recordação do twa Tharcisse Mugabe apareceu transparente em minha mente. Espantei-me por perceber que justamente no momento da minha saída de Kigali, os meus fantasmas finalmente se expressavam na tristeza que escorria por minha face.
— De onde são estas flores? — Perguntei ao oficial e ele me pegou pelo ombro e falou:
— No caminho para cá, disseram-me pelo rádio que me faria esta pergunta, Dra. Isabelle. Mandaram-me lhe dizer que a reposta para ela fará parte do assunto a ser tratado, após me acompanhar.
Os outros passageiros me olhavam admirados, pois eu recebia flores, contudo, com o olhar lacrimejante, estava sendo obrigada a desembarcar. Eles avaliavam-me.

O buquê era um aceno de amizade ou deboche de gosto duvidoso e inadequado à ocasião?

Os tripulantes tentavam entender por que motivo o exército daquele país havia parado a aeronave. Eles estavam assustados e com pena de mim, já que era-lhes evidente que aqueles homens sinistros, fardados e armados estavam me capturando.
Perguntei ao tenente:
— Quem insiste tanto em falar comigo, senhor?
— O próprio Presidente da República deste país, Paul Kagame, Dra. Isabelle.
Levantei-me da cadeira e acompanhei os soldados pelo corredor apertado, enquanto um sargento confiscava e carregava minha bagagem. Todos ficaram assustados dentro da aeronave, ao sentirem a tensão no ar que, no entanto, nos seguia, para alívio deles. Os militares, todos jovens, não sabiam ao certo por que me detinham e isso ficava explícito nos seus olhares curiosos. Desci as escadas ao encontro do destino e, enquanto passava pela pista, as pessoas a bordo do avião iam às janelas para me ver caminhar pelo kanombe escoltada por membros do exército. Olhavam-me curiosamente e temiam pela minha sorte. Por meu lado, percebi que acreditavam que eu tinha me metido em uma bela encrenca ou que deveria ser uma pessoa muito perigosa a ponto de os ruandeses terem quase atropelado um avião daquele tamanho em pleno trabalho de decolagem, somente para me segurarem por mais tempo em Ruanda.





2 – CERCA DE DEZ ANOS ANTES - KIGALI


Até meados dos anos oitenta do século XX, a rotina de vida de Isabelle em Nova Iorque era movimentada. Seu pai passava a maior parte do tempo em Washington a serviço do Senado, já ela e a mãe moravam em Nova Iorque. Ele ia para casa apenas nos finais de semana. Ao amanhecer, ela seguia para o treinamento de tiro esportivo, à tarde, para a faculdade de medicina e, à noite, treinava judô e defesa pessoal. Defendera a equipe americana de lutas em uma olimpíada e obtivera uma medalha de prata. Apesar disto, ficara triste por não ter sido campeã.
Isabelle competiu nos XXIV jogos olímpicos em Seul, na Coreia do Sul, em 1988, na modalidade do Judô, na faixa de peso médio. Fez uma etapa classificatória muito boa, entretanto, na semifinal, contra uma garota alemã, machucou-se seriamente. Derrubou a europeia, tentando vencê-la por ippon, contudo, conseguiu tão-somente um waza-ari. Esta pontuação é concedida quando o lutador tenta o ippon, porém não realiza o golpe com perfeição e o adversário não cai com as costas paralelamente ajustadas ao chão. Ganhou a luta, no entanto, luxou o braço, pois a alemã caiu com todo o peso sobre ele. Um drama instalou-se de imediato e ela não deveria disputar a medalha de ouro naquele estado. Muitos tentaram persuadi-la a não retornar ao dojo, porém, preferiu entrar. Na final, quando o público a viu chegar segurando o braço para que não se desconjuntar do resto do corpo, fez um sentido silêncio. Isabelle olhou para a adversária e viu a expressão de felicidade estampada na cara da maligna. A russa abotoou um risinho sarcástico, quando a cumprimentou, já que sabia ser dela o valioso ouro. Assim que se iniciou o combate, a oponente segurou a americana pelo kimono e a arremessou ao tatame, conseguindo um ippon, o dito golpe perfeito. Isabelle se estatelou no piso e sentiu novamente uma grande dor. Todos a cumprimentaram e até redes de TV de todo o mundo queriam-na entrevistar, declarando que ela tinha o espírito olímpico nas veias. Na realidade, esta americana não pensa naquele espírito, tampouco que ganhou uma medalha de prata, pois sabe que perdeu a melhor medalha. Desta forma se comportou em Seul, assim age agora e, deste modo, sempre será uma mulher polêmica e aguerrida.

* * * * *

Quando concluí o curso de medicina, aos 25 anos, encontrei a oportunidade de fazer um trabalho filantrópico para a Cruz Vermelha, inicialmente, na Índia, no entanto, depois, me mandaram para Ruanda. Um professor da faculdade me escolheu. Aceitei de imediato, mas não antes de lhe perguntar, por curiosidade:
— Por que o senhor me indicou para este trabalho, professor?
— Porque você é uma rica menininha mimada, Isabelle.
Aquele homem de meia-idade era um bom cidadão americano e típico eleitor do partido democrata, que estava no poder. Meu pai era um republicano que fazia oposição ao Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que ficava do lado do professor. Meu mestre, depois de ser contatado pelo pessoal da Cruz Vermelha, avaliou o currículo de todos os formandos de medicina daquele ano e ponderou que eu tive a sorte de nascer em uma família com ótimos recursos financeiros e, por conta disso, tinha o dever moral de ajudar os pobres do outro lado do mundo, sem levar em conta que eles também existiam em Nova Iorque.
— Por acaso, isso é motivo para me punir?
— Ah! Ah! Ah! Participar da Cruz Vermelha não é uma punição, Isabelle. Um ano e meio de contato com a pobreza e sofrimento do Terceiro Mundo fará com que se torne uma mulher madura.

Benditas e proféticas palavras daquele senhor!

Ao chegar pela primeira vez em Ruanda, em meados de 1993 e deixar o aeroporto de Kigali, fui levada diretamente para o escritório da Cruz Vermelha local e lá encontrei Dr. Mike, um elegante médico inglês, senhoril que contava 54 anos de idade e superintendia as operações de assistência médica na África Central. Era um inteligentíssimo senhor de ateísmo radical e incorrigível. Por causa do conflito, Dr. Mike desejava montar uma equipe formada de profissionais experientes em questões militares e estava fazendo alguns ajustes no seu grupo de trabalho, através do rodízio de pessoas. Como eu era uma novata, não se agradou da minha indicação para o posto de médico justamente ali. Pelo sim, pelo não, eu atuaria no Centro Hospitalar de Kigali, um hospital sob monitoramento do governo da Bélgica, em uma ação de ajuda àquele país.
O relevo acidentado de Kigali impressionou-me. A cidade, assim como quase todo o Ruanda, possui muitos morros e, por conseguinte, as pessoas do lugar chamam aquela nação de a terra das mil colinas. Mil Colinas, ademais, é o nome do hotel para onde fui inicialmente até que o médico decidisse onde me acomodar. De início, falou-me que eu ficaria em um centro religioso aos cuidados de um bispo italiano. No entanto, informei-lhe que pretendia morar sozinha em algum lugar do centro da cidade, uma vez que minha viagem tinha, como uma das principais motivações, minha inserção em uma cultura exótica para os padrões americanos. Eu era uma jovem curiosa e a oportunidade de interagir com pessoas diferentes das quais mantinha contato nos EUA me seduzia. Meu espírito aventureiro me levou à África e Dr. Mike estranhou meus interesses.
— Excêntrica sua fundamentação, Dra. Isabelle, já que todos que estão aqui justificam sua participação em programas de assistência ao Terceiro Mundo com o desejo de prestar auxílio a pessoas necessitadas.
— Sentir-me-ei muitíssimo bem em ajudar os outros, Dr. Mike, todavia também quero adquirir conhecimentos para minha vida profissional e me tornar uma mulher experiente.
— Você vem de uma família rica, não é?
— Sim, nunca precisei me esforçar para conseguir bens materiais.
— Quer dizer que sua aventura africana é um capricho de uma jovem garota nova-iorquina?
— Não chegaria até esse ponto em uma análise fria da questão, contudo, se quiser interpretar os meus ideais por este ângulo, não o condenarei por isso.
— Está certo, Dra. Isabelle. Não me cabe avaliar seus sentimentos e atuar com vontade e abnegação é o bastante, pois um médico tem muito a fazer em um país tão pobre como este.
— Fui alertada sobre isto, porém, meu contrato com a Cruz Vermelha é de um ano e meio. Posso suportar a carga de serviço neste período.
— Você acertou o valor da ajuda de custo?
— Já, mas como lhe disse, não me importo com dinheiro nesta empreitada.
— Temos quatro núcleos de atuação, Dra. Isabelle: Kigali, Kibungo, Butare e Kibuye. Tínhamos cinco, mas a nossa filial em Byumba deixou de funcionar há pouco tempo, pois este governo não tem condições de oferecer segurança aos nossos voluntários no Norte do país.
— Por que não?
— Os rebeldes tutsis fizeram uma incursão no Norte, tornando aquela região um inferno onde não temos como atuar a não ser em operações conjuntas com o exército.
— O que eles querem, Dr. Mike?
— Não acredito que não leu, ao menos, um pouco sobre a história deste país, antes de vir para cá.
— Infelizmente, não tive tempo, pois até a semana passada, acreditava que iria para algum país oriental e supus que fosse a Índia.
— Por que você não foi para lá?
— Provavelmente, por alguma questão política interna da Cruz Vermelha, já que, de última hora, uma garota romena foi no meu lugar. Um colega me declarou, extraoficialmente, que pessoas influentes naquele país solicitaram a presença dela.
— Conformou-se com esta injustiça?
— O que eu poderia fazer se os próprios indianos impuseram outra profissional em meu lugar? Que façam bom proveito da médica escolhida.
— Faz sentido e foi por isso que veio uma pessoa a mais para cá. Aposto que você leu a história da Índia e vez da nossa.
— Exatamente.
Dr. Mike pegou um grande mapa e o espalhou por sobre uma larga mesa de trabalho. Mostrou-me as características geográficas do país, ao passo que falava um pouco sobre Ruanda. Explicou-me as divisões políticas em províncias, distritos, prefeituras, cidades, vilas etc. Falou-me da economia voltada para a lavoura e pecuária, da história e da composição étnica.
— Por que há tão poucos twas? — Perguntei-lhe.
— Eles são apenas 1% do povo daqui, mas até que são muitos, se levarmos em conta as péssimas condições em que vivem. Na verdade, estão sendo exterminados por tutsis e hutus.
— Que horror!
O médico esclareceu-me que os tutsis e hutus travavam um embate histórico pela hegemonia do poder e, por muitos anos, aqueles estiveram no comando, entretanto, à época, eram os hutus, que dominavam o país. Os tutsis foram perseguidos e massacrados em algumas oportunidades recentes e, por conta disto, milhares fugiram do país, principalmente, para a vizinha Uganda onde fundaram um movimento guerrilheiro chamado Frente Patriótica Ruandesa. O objetivo do movimento tutsi era descer até a capital e tomar o poder central do país. Segundo o inglês, a situação ficava pior, a cada dia porque os hutus passaram a usar força bruta para intimidar os tutsis civis residentes no país, em represália aos ataques que sofriam a partir da fronteira norte. Ele me relatou que alguns burgos setentrionais do país já estavam em poder da FPR.
O expatriado grupo rebelde, seus membros, assim como seus simpatizantes eram também conhecidos por inkotanyis, palavra que significa invencíveis em ruandês. Os tutsis, em geral, eram cognominados pelos hutus de inyenzis (baratas) de forma pejorativa e ofensiva. Dizem que a origem deste termo com esta acepção remonta ao tempo em que os tutsis exilados adentravam no país na privacidade das noites e se camuflavam durante os dias, costume adotado pelas baratas, insetos de hábitos noturnos. A pressão bélica no Norte inquietava os hutus, que viam a possibilidade de perderem o poder e serem expulsos do país cada vez mais factível.
— Ainda existe tempo de desistir, Dra. Isabelle, pois estou sendo flexível com os profissionais que não se sentem à vontade para trabalhar neste lugar. Esta semana, liberei três de nossos colaboradores porque eles estavam se sentindo inseguros.
— Quem se candidata para a Cruz Vermelha sabe que atuará em locais pouco aprazíveis.
— Isto é verdade, todavia a situação nesta região é inusitada porque não existe uma frente de batalha delimitada e temo que esta contenda chegue às nossas casas em breve. Há um sem-número de civis inexperientes em ação e caminhamos para a desordem total. Como poderei lhe oferecer segurança, se a arruaça bater à sua porta?
— O senhor não é nada animador, Dr. Mike.
— Sou sincero, pois Ruanda não é o melhor dos lugares para uma mulher jovem, bonita e fina. Talvez possa encontrar algo a contento em uma nação da Europa Oriental ou mesmo da Ásia.
— O que está a me dizer? Quer que eu corra e volta para o aeroporto? Será que uma bomba cairá sobre nossas cabeças em cinco minutos?
— Ah! Ah! Ah! Vejo que possui senso de humor e isto é bom, visto que ajuda a aliviar a tensão. Não precisa ir-se hoje porque só há voo daqui a dois dias.
— Vá que seja e reserve-me um assento confortável nesse avião. Sou americana e não uma francesa com vocação para Joana D’Arc, que gostava de se envolver em lutas na Idade Média.
— Partir é uma decisão sensata, mas aproveite estes dois dias de visita. Neste sentido, eu a levarei ao Hotel Mil Colinas e depois visitaremos o Centro Hospitalar de Kigali, onde você trabalharia. Pelo menos nestes dois dias, pretendo lhe mostrar de que é feita a medicina do Terceiro Mundo.
Quando nós estávamos a ponto de sair do local, uma jovem chegou às pressas e Dr. Mike dirigiu-lhe a palavra.
— Bom dia, Rose, algum problema?
Rose Kabaguyoi era uma competente enfermeira recém-passante de 22 anos de idade e que trabalhava no Centro Hospitalar de Kigali. Era uma jovem tutsi alta, elegante e de talhe esguio que exorbitava da beleza. Possuía os traços do rosto finos, como a maioria das pessoas da sua etnia, além de ser belíssima e retocada como uma obra de fino talho. Morava na Fazenda Boa Esperança (Fazenda BE ou FBE), de propriedade do fazendeiro Emmanuel Habimana, que andava pela casa dos 60 anos. A propriedade rural ficava na Província do Sul, no distrito de Gitarama, que dista 70 quilômetros da capital. Rose fazia uma viagem cansativa de ida e volta, sempre que tinha plantão no Centro Hospitalar.
— Temo que sim, Dr. Mike, pois há uma emergência para o senhor no Hospital.
— Vamos então, Rose. Venha conosco, Dra. Isabelle porque esta é uma bendita oportunidade para você conhecer o CHK e será apresentada ao nosso calvário. Antes de tudo, esta garota formosa é Rose Kabaguyoi, uma de nossas enfermeiras. Rose, esta é Dra. Isabelle, que ficaria conosco, mas pelo bem dela está de partida. Como você veio, Rose?
— Eu estou a pé. Vim em uma ambulância, entretanto, ela não pôde ser deixada à minha disposição, por transportar um paciente.
— Utilizaremos a Land Rover da Cruz Vermelha, então.
Dr. Mike guiou a picape com pressa, porém com segurança, pelas estreitas ruas da cidade. Rose perguntou-me:
— Por que não ficará conosco, Dra. Isabelle?
— Dr. Mike me disse que a situação política deste país é conturbada.
— A Cruz Vermelha não está pronta para estas situações?
— Só está, Rose, e, na verdade, a Cruz Vermelha atua em majoritariamente regiões de conflito.
— Sendo assim, por que não fica conosco? A senhora parece ser uma boa pessoa.
— Obrigada, querida, mas não se preocupe porque virá outro médico em meu lugar. Dr. Mike não acha prudente que eu fique, visto que esta é minha primeira incumbência para a Cruz Vermelha e ele pretende trazer um profissional mais experiente.
— Quando partirá?
— Depois de amanhã.
— Não vou sair do seu lado e tentarei fazê-la mudar de ideia porque gostei da senhora.
— Grata, colega, entretanto, isto está decidido.
Nós estávamos em meados de 1993 e, apesar de a situação em Ruanda não ser boa, nem de longe se assemelhava ao caos que se tomaria conta do país no primeiro semestre do ano seguinte. Existiam hostilidades, é verdade, contudo a palavra da moda era paz. Hutus e tutsis negociavam a assinatura de um acordo de partilha do poder, mediante a instalação de um regime democrático com amplas e livres eleições para todos os cargos políticos.
— Dr. Mike não lhe contou que nós iniciamos um processo de pacificação? — Rose me esclareceu.
Questionei Dr. Mike, que parecia alheio à nossa conversa.
— Os conflitos estão terminando, Dr. Mike, e, segundo Rose, as partes assinam um tratado de não agressão.
— Não confie nisto, Dra. Isabelle, porque apenas empenham-se em ganhar tempo com esta estratégia e ficar bem com a opinião pública mundial.
— Por que o governo e a Frente Patriótica Ruandesa querem impressionar outras nações?
— Por dinheiro, doutora. Sem uma perspectiva de trégua, não há como os países ricos enviarem valores para projetos de desenvolvimento e assistência social porque sabem que o dinheiro será usado em boa parte no esforço militar. Os políticos do Ocidente sentir-se-ão culpados, caso seu capital financie a aquisição de armas para extermínio de pobres.
— Quais países enviam recursos para esta revolução?
— Bem, em relação ao dinheiro e assistência aos hutus, a França é a campeã.
— E no caso dos tutsis?
— O Exército de Resistência Nacional de Uganda apoia os Tutsis, fornecendo armas e treinando os Inkotanyis. A RPF nasceu lá entre os refugiados e alguns de seus líderes lutaram pelo ERN.
Chegamos ao hospital e caminhamos ao encontro da urgência apontada por Rose. A ocorrência era um torpe estupro de uma twa, praticado por um hutu ou tutsi. Constrangi-me por ser a violência contra mulheres o meu primeiro caso médico no país e Dr. Mike, ao percebeu o meu constrangimento, tentou me tranquilizar.
— Não se impressione, Dra. Isabelle, porque Kigali não é Nova Iorque e aqui casos de estupros são quase tão comuns como as epidemias de gripe.
Evidentemente, o médico exagerou na dose, para realçar a existência de maus tratos a mulheres em um Ruanda acometido por desordens em tempos de exceção.
Olhei para a lânguida twa desfalecida no leito hospitalar e a comiseração tomou-me o coração. Ela estava toda ensanguentada, padecendo de dor. Como toda twa, era pequenininha e frágil. Além do mais era assaz jovem. Doeu-me na alma ter tão péssima recepção naquele país e covardia era um termo apropriado ao caso, assim como demoníaco adjetivava bem o executor de tal atrocidade. Perguntei a Rose:
— Qual é a idade desta menina?
— Ela deve ter uns 12 anos, Dra. Isabelle.
— Será que prenderam o criminoso?
— Ele não será preso.
— Por que não? Como pode ter certeza?
— Não sei se notou que ela é twa.
— Sim, e o que tem isso a ver com a fuga do criminoso?
— Geralmente a gendarmerie não prende quem maltrata os pigmeus. — Referiu-se à polícia civil ruandesa.
— Os twas, por formarem uma pequena minoria, não são contemplados pela justiça regular. — Acrescentou o médico.
— Como assim?
— A eles não é dado registro formal de cidadão e, por conseguinte, têm dificuldades de reivindicar seus direitos perante órgãos oficiais. São segregados por tutsis e hutus devido a preconceito étnico.
— Quer me dizer que essa menina não possui registro de nascimento ou cédula de identificação?
— Provavelmente, não e é como se não existisse oficialmente.
— Por que ninguém se insurge contra isso, Dr. Mike?
— Existem algumas ONGs que lutam pelos direitos dos twas de Ruanda, do Burundi e do Congo. Entretanto, esta não é uma causa da Cruz Vermelha e já tenho muito a fazer dentro de hospitais. Você, por seu lado, pode contatar o pessoal das ONGs ou da Igreja e descobrir o que pode fazer para ajudá-los. Adianto, que, apesar de alguns missionários levantarem esta bandeira, não fazem progresso nesta tarefa ingrata.
— Por que será que o facínora atacou esta garota? Não vejo nada nela que pudesse ter atraído a atenção de um homem.
O médico respondeu:
— Este é legalmente um crime sexual, todavia o prazer carnal não foi a motivação do delito, Dra. Isabelle. Ele não se sentiu carnalmente atraído por ela, eu lhe garanto.
— Como sabe disso?
— Existe uma crença antiga neste lugar de que um homem pode curar uma dor nas costas se fizer sexo com uma twa. É uma superstição absurda, mas não para muita gente daqui.
— Será que ele estava com algum problema de coluna?
Dr. Mike fez um breve silêncio e Rose finalizou a explicação.
— Antes ele estivesse com as costas em mau estado, Dra. Isabelle. É quase certo que o agressor é portador do vírus HIV e, no desespero de se livrar da doença, fez sexo com a twa. Estes atentados contra as pigmeias são frutos da ignorância do povo e se tornaram comuns ultimamente.
Como profissional de medicina, foi difícil ver que em pleno ano de 1993 ainda existiam crendices absurdas de tal monta. Senti-me mal, após ajudar Dr. Mike nos trabalhos de atendimento da sua paciente, cuja sobrevivência não estava assegurada, em virtude dos graves ferimentos pelo corpo frágil. Nada mais havia a dar além de preces e, assim, Eu e Rose fomos até o portão do hospital, para tomarmos um pouco de ar fresco. O entardecer ruía e uma brisa suave acariciava nossos corpos suados, recompondo em parte os recortes do espírito subtraídos pelas dores dos pacientes que adentram aos montes nas casas de saúde.
De repente, uma viatura do exército parou à porta do Centro Hospitalar e dela saiu um militar alto e elegante, cumprimentando-nos gentilmente para, em seguida, se dirigir a Rose.
— Dr. Mike está no CHK, Rose? General Gedeon Bagirubwira deseja vê-lo.
— Irei chamá-lo, tenente Fred Kaka. Aguarde um momento, por favor. — Apontou, apresentando-me ao militar hutu. — Está é nova integrante do corpo médico do Centro Hospitalar, Dra.  Isabelle.  Ela é americana e trabalha para a Cruz Vermelha.
— Muito prazer, senhorita! Encantado em conhecê-la. Nós ruandeses devemos à Cruz Vermelha e, se precisar do exército, pode contar conosco. Por sinal, Dr. Mike é um notável colaborador do exército. Parabéns por sua beleza.  — Tenente Fred Kaka era um bem-apessoado e inteligente jovem militar hutu de porte sedutor aos 29 anos de idade.
— O prazer é todo meu e obrigada pelo elogio.

* * * * *

Rose foi chamar Dr. Mike, que, por certo, estaria dentro do hospital paquerando as enfermeiras tutsis. Quando chegou e viu uma viatura do exército ruandês com o tenente Fred Kaka ao lado, percebeu que teria de comparecer ao Quartel de Kigali para encontrar o próprio General Gedeon Bagirubwira, um poderoso, narcisista e déspota militar hutu de 59 anos, antitútsi convicto. O médico possuía uma grande amizade com o general hutu. Para que a médica novata não ficasse sozinha, à toa, tateando o que fazer pelas ruas da cidade, pediu a Rose que a acompanhasse por um pequeno roteiro turístico, mas, fez mil recomendações para a garota.
— Pode deixar, Dr. Mike, porque darei o melhor de mim e cuidarei pessoalmente de Dra. Isabelle.
— Rose, passeie com a doutora por aí, mas tente não influenciá-la a ficar conosco. Esta é uma decisão importante que cabe somente a ela e portanto, fique fora disto!
— Está certo, doutor, não sairei de perto dela. É assim que deseja, não é?
A tutsi notava que a visitante hesitava em partir, apesar de a experiência com a pobre twa ter-lhe causado desconforto. Na verdade, o destino, este ente trabalhador, começava a encaixar algumas peças na engrenagem do genocídio ruandês, levando Isabelle a crer que o país necessitava de mulheres fortes, principalmente, por ser médica. Ela não tinha certeza se poderia cumprir contrato com a Cruz Vermelha, pois Dr. Mike fora-lhe contundente na sua preferência por alguém experiente em missões daquela natureza.

Dra. Isabelle, eu não posso aproveitá-la sequer nos apoios, porque um dia até estes empregos serão afetados por esta guerra!

— Oh! Como pode? Viu o mesmo que eu, doutora?
— Vi que se refere à beleza de tenente Fred Kaka, não é?
— Sim, admiro o charme dele. É uma pena que esteja de casamento marcado.
— Não se afobe, Rose, porque já vi alianças caírem à porta de igreja.
— Quem me dera! Infelizmente, tenente Fred Kaka, apesar de querido por muitas mulheres de Kigali, tem olhos somente para uma delas. Ele é um homem diferente dos demais desta cidade, pois estudou no exterior, é belo, inteligente e fino. Mora com os pais e a mãe o mima em excesso.
— Isto não é defeito e ser integrante de uma boa família é uma graça.
— Eu sei, Dra. Isabelle, contudo tenho amigas que gostariam de vê-lo um pouco mais malicioso no trato com mulheres.
— Ah! Ah! Ah! Aleluia! Percebo que as garotas de Ruanda são como as americanas.
Rose gostou de ver a recém-chegada sorrir, pois notara que a experiência com a twa violentada fora ruim. Olhou para o outro lado da rua e viu Tharcisse Mugabe sentado em um banquinho encostado ao tronco e à sombra de um majestoso podocarpo. A árvore é nativa da África e foi plantada na capital pela administração do país, como parte de um projeto paisagístico, visto que, além de bela, adaptou-se bem às médias altitudes e condições climáticas da Província de Kigali.
Tharcisse Mugabe era um inteligente twa de 27 anos que tinha sido criado com o apoio de um estancieiro da cidade de Byumba que criava gado ankole (ancolé). Seu pai foi trabalhador de confiança na propriedade e, em agradecimento aos valiosos trabalhos, o patrão dera educação ao garoto twa. Todavia, mesmo sendo portador de educação formal, não encontrava uma oportunidade de emprego. Ele não quis labutar com o artesanato de barro como fazia a maioria dos pigmeus e encontrou um ramo inusitado de atividade: a produção e venda de flores de corte usadas nos eventos fúnebres de Kigali. A tutsi falou:
— Vou lhe apresentar outro twa, Dra. Isabelle.
— Eu não sei se gostaria, amiga. Uma pigmeia foi o suficiente por hoje.
— Porém, este é diferente dos outros.
— O que ele tem de especial?
— É inteligente, meigo e um doce de pessoa, além de educado e prestativo.
— Está bem, Rose, vamos conhecer seu amigo twa. Afinal de contas, estou ao seu dispor. Você hoje é Dr. Mike de saias.
— Cruz-credo! Eu lá quero ser o inglês namorador.
— Eu o achei atraente, Rose.
— A senhora e metade das tutsis de Kigali.
— Ele só gosta das tutsis?
— Não apenas ele prefere a nós tutsis, mas também a maioria dos homens, pois as hutus não têm o nosso charme.
— Charme ou outra coisa, Rose Kabaguyoi? — Rose riu e falou:
— Atributos femininos. Tudo, Dra. Isabelle. Ah! Ah! Ah!
— Quem sabe se Dr. Mike não me ache parecida com uma tutsi? Uma tutsi americana! Ah! Ah! Ah!
Rose chamou Tharcisse Mugabe.
— Tharcisse Mugabe! Tharcisse Mugabe, venha cá!
O twa chegou de imediato.
— Qual o problema, senhora Rose Kabaguyoi?
— Ora bolas! Não me chame de senhora porque não sou tão velha assim.
— Como queira, Srta. Rose, eu não mais a chamarei assim.
Fazer Tharcisse Mugabe parar de tratar Rose formalmente e cheio de bajulações não era tarefa fácil, pois tal servilismo fazia parte de uma educação fundamentada na submissão e inferioridade que ele acreditava ter em relação a outras pessoas. Para ele, tutsis e hutus eram naturalmente melhores que os twas e, por conta disto, ao serem cumprimentados, eram merecedores de rapapés. Como isto lhe fora ensinado nas escolas que frequentou, ainda que tratasse a tutsi jovialmente, quando era repreendido, logo retornava à formalidade.
— Quero que você conheça Dra. Isabelle. Ela trabalha conosco no Centro Hospitalar e, se precisar de algo, obedeça. Está bem?
— Certo, Srta. Rose. Muito prazer, Dra. Isabelle. Meu nome é Tharcisse Mugabe.
—O que faz com tantas belas flores, Tharcisse Mugabe?
— Eu as vendo, doutora. Não quer comprar algumas?
— Por que uma mulher compraria um buquê de flores? Prefiro recebê-las.
— Não ganharia o suficiente para decorar sua casa. Poderia receber um ramalhete de um amigo ou namorado….
— Pois deixe de ser sovina e me dê uma flor dessas para eu pôr no meu penteado.
— Não posso, Dra. Isabelle, porque elas são o meu ganha-pão.
— Você conseguirá vender todas?
— A maioria sim e as que sobram deixo com um amigo que as negocia na porta do cemitério no dia seguinte. Os mortos não são tão exigentes quanto os vivos em relação ao seu estado.
— Vejo que é um twa esperto, Tharcisse. Bem que me disseram isso antes. Como morre muita gente por estas bandas, aposto que seu negócio vai bem.

* * * * *

Rose decidiu me levar à feira local, pois, se tinha como incumbência me mostrar um pouco da cidade, também desejava adquirir algumas batatas para levar consigo para a Fazenda BE, que se encontrava em entressafra. Então, uniu o útil ao agradável. Convidou Tharcisse Mugabe.
— Vamos conosco ao mercado, Tharcisse.
O mercado de Kigali é uma ruidosa, multicolorida, movimentada e concorrida feira ao ar livre. Possui farta quinquilharia que é oferecida aos pregões esgoelados por feirantes e exala uma africanidade ímpar. Sua especialidade é a venda de frutas, verduras e cereais, porém outras coisas são comercializadas no local, até mesmo de maneira clandestina. As pessoas prestavam atenção em mim, enquanto nos movimentávamos pelas estreitas ruelas formadas pela disposição das barracas em linhas paralelas entre si. Como vários produtos ficavam expostos ao chão por sobre toalhas estendidas, a higiene não era o mais forte dos seus atributos. No entanto, não estava ali para realizar uma inspeção sanitária, mas sim para conhecer o lugar. Rose se entreteve a pechinchar o preço das batatas com os feirantes, argumentando em voz alta em uma incompreensível kinyarwanda. Passou-me a impressão de ser uma dura negociante, pois eu nunca tinha visto alguém demorar tanto para comprar dois quilogramas de batatas.
Quando finalmente ela havia adquirido o produto e estávamos de saída, na borda da feira, uma algazarra encaminhou-se em nossa direção, proveniente de dentro do mercado. Dois hutus gritavam em perseguição a um indivíduo. Era outro twa que, ao passar por nós, se atirou nos braços de Tharcisse, percebendo estar cercado. Os brutos o alcançaram, arrastaram-no pelo braço à força para o lado e começaram a espancá-lo com força. Todos em volta nada fizeram, inclusive Rose que permaneceu impassível, checando se todas as batatas permaneciam dentro da sua sacola, que fora derrubada pelo twa em fuga. Como ele levava uma surra pesada demais para seu corpo pequeno e frágil, a cena lembrou-me a jovem pigmeia que naquela hora padecia em um leito do Centro Hospitalar, sendo vítima da fúria covarde de algum bandido da laia daqueles trogloditas. Levada pela emoção, peguei umas batatas da sacola de Rose, parti para cima e as atirei contra os caras que batiam no twa. Então, um deles voltou-se e me deu um sonoro tapa na testa e fui parar no solo a dois metros de distância, estatelando-me sobre uma barraca de madeira velha, que se quebrou produzindo um estrondo forte de panelas de argila quebradas. Como o hutu pensou que tinha me nocauteado e se desguarneceu, tornei com raiva e pulei nas costas dele, acertando-lhe, por trás, um pontapé na cabeça que o fez ruir. Rose foi tomada de assombro e não soube o que fazer, imaginando que seu emprego estaria perdido, se algo me acontecesse na barafunda. Ela me fitava com os olhos esbugalhados, enquanto eu me mantinha ensandecida em meio a uma briga generalizada. Outras pessoas entraram na contenda, tomando o nosso partido ou dos hutus, e a rusga passou a ser um acerto de contas entre hutus e tutsis, cada vez mais violenta. Barracas aos pedaços voavam para todos os lados enquanto paus, pedras e toda a sorte de objetos contundentes eram usados como armas. Já se podia perceber algum sangue salpicado no chão. Tharcisse postou-se ao meu lado portando um aterrador porrete de madeira com um prego afiado na ponta, ameaçando cacetear qualquer pessoa que tentasse me atingir. O outro twa, de nome Mukono, brigava como um demônio nanico e feria outros homens com até duas vezes seu tamanho. Rose rouquejava como louca o meu nome, implorando-me para sair dali, mas não conseguia apaziguar-me, pois eu não poderia abandonar aquela rinha, já que tinha perdido o patrulhamento da razão. Sempre fui uma garota impulsiva e meus pais, desde minha adolescência, haviam desistido de controlar o meu ânimo agitado. Eu, quando mais jovem, fora atleta, treinara e competira em eventos esportivos, e praticara artes marciais como recomendação médica para descarregar uma adrenalina sempre alta. Eu também gostava de esportes de aventuras, tipo alpinismo e paraquedismo, e, no fim das contas, eu era boa de tapas. Como estava habituada a levar sopapos em competições de lutas pela equipe olímpica dos EUA, não saí do meio da agitação e, ainda que não pudesse vencer um homem jovem e forte, ao menos podia contundi-lo de alguma forma. Assim, eu soltei pernadas para todos os lados, levando e dando tapas e mais tapas no pega pra capar. Eles não poderiam ferir outro pigmeu e ficar tudo por isso mesmo. Ainda que eu não tivesse visto o elemento que fizera o trabalho sujo na pigmeia internada no hospital, pelo menos, aqueles eu pegaria. Eu via a face do agressor da garota em cada ser que surrava o twa à minha frente. Somente depois, com o sangue já meio morno, pude perceber que correra um sério risco.
Os gendarmes chegaram e pararam a balbúrdia, pois boa parte da feira tornara-se uma enorme bagunça e muitos feirantes tiveram prejuízos. Pessoas espertas aproveitaram para saquear as mercadorias, com um arrastão nos produtos expostos. Os policiais mal puderam acreditar, quando perceberam que uma médica americana estava envolvida na ocorrência e ficaram temerosos de me levar presa sem autorização. Passaram um rádio para a base de operações e, consoante eram orientados, detiveram todos os brigões no local sob a mira dos rifles e de joelhos, inclusive eu e os dois twas, com as mãos sobre a nuca. Rose ficou de fora do tumulto e não teve coragem de desferir um único golpe sequer, apesar de não ter saído de junto de mim. Havia muita gente observando a cena e o lugar ficou mais agitado quando chegaram os repórteres da Television Libre des Milles Collines, ou Rádio Mil Colinas, que, apesar do nome garboso, não era uma rede de televisão, mas simplesmente uma estação de rádio. Começaram a transmitir o ocorrido ao vivo para um programa folhetinesco, o que fez aportar mais gente ao local. Os kigalenses chegavam e se espantavam ao me verem toda desalinhada, ajoelhada e rendida pelos policiais por envolvimento em tumulto. Se eu tivesse intencionalmente tentado conseguir uma entrada apoteótica em Ruanda, não teria uma tão perfeita. As testemunhas comentaram o caso para a imprensa falada e escrita, aumentando a gravidade da situação e o alcance dos meus feitos no quebra-pau contra os hutus.

Alardearam que eu era uma grande mestra em Kung Fu e que viram quando, com não mais que uma pernada, derrubar dois lutadores de uma vez só.

Dez minutos depois, chegaram Dr. Mike e tenente Fred Kaka, que estiveram em companhia de general Gedeon Bagirubwira. O líder hutu mandou o tenente lidar com a questão da maneira mais diplomática possível porquanto havia uma americana envolvida na ocorrência policial. A recomendação era para se minimizar as consequências da algazarra, dispensando-se os delinquentes, para que o assunto terminasse ali mesmo, se não houvesse mortos no entrevero. O general determinou que os materiais da imprensa fossem apreendidos para averiguação do conteúdo fotográfico que seria divulgado sobre o incidente, pois não queria ver uma imagem de Isabelle estendida no chão de uma feira de Kigali estampada nos jornais do dia seguinte, já que o caso poderia se tornar um embaraço diplomático.
Naquela época, um acordo de ajuda entre a França e Ruanda estava em curso e os militares franceses treinavam e aparelhavam, anonimamente, grupos paramilitares hutus, dando curso a milícias que agiam à revelia da lei, incitando a baderna e provocando medo e terror atroz, tais como a Impuzamugambi, nome que significa aqueles que têm o mesmo objetivo. No entanto, a mais famosa, atuante e sanguinária de todas era a Interahamwe, aqueles que lutam juntos. Na realidade, qualquer incidente ruim envolvendo políticos que apoiavam o pacto franco-ruandês na ONU seria prejudicial para a governança local.

O Presidente ruandês Juvénal Habyarimana admira o pai da médica americana, um político aliado à garantia do apoio dos Estados Unidos a um Ruanda hutu.

Dr. Mike chegou, aproximou-se, tirou-me do meio dos prisioneiros e me levou para dentro da picape Land Rover, pedindo-me para ficar quieta e que Tharcisse não sair de perto de mim. Já calma, dentro do veículo, falei para ele:
— E o twa, Dr. Mike?
— Qual twa, Dra. Isabelle? Ele já não está aqui do seu lado?
— Não me refiro a Tharcisse Mugabe, mas ao outro twa.
— Que outro twa? Como pôde, em menos de uma tarde, se envolver com dois pigmeus?
— Dois não, três! Esqueceu-se da garota no hospital?
— Lógico que não. Lamentavelmente, tenho a lhe dizer que ela faleceu, ao não suportar os ferimentos.
— Está vendo como essa gente é ruim? Vá logo buscar o outro twa, antes que o enterrem vivo!
Dr. Mike se surpreendeu como, em menos de uma tarde em Kigali, eu já conhecera três twas, que pertencem a um grupo étnico tão pouco numeroso. Olhou em volta e não viu mais nenhum pigmeu além do que estava ao meu lado, pois Mukono estava trancafiado dentro de uma viatura policial. Sondou Tharcisse:
— De quem ela está falando?
— De Mukono, Dr. Mike.
— O quê? — O médico virou-se e disse: — Pelo amor de Deus, Dra. Isabelle! Mukono é um twa treteiro e tem muito de um ladrãozinho que não vale nada. Esqueça-o, por favor, e não se meta com ele, pois vive se envolvendo em tumulto. Como faz tempo que não dava as caras por aqui, eu pensei que estivesse morto.
— Deixe de ser exagerado! Os homens se reuniram para espancá-lo até a morte em praça pública e, sabe o que fez de errado?
— Não, doutora, eu não sei o que ele fez de errado.
— Furtou duas laranjas, provavelmente, porque está com fome.
— Dra. Isabelle, você está em Ruanda e não em Nova Iorque. Aqui, roubar um doce é o mesmo que um automóvel nos EUA, pois essa gente tem princípios morais diferentes dos nossos.
— A lei de Deus é universal e a justiça é um conceito além de uma maldita norma escrita pelo homem. Elas nem sempre andam juntas. Vá tirar Mukono das mãos dos insanos. Não acha suficiente o martírio da garotinha no hospital? Se não o trouxer, eu vou buscá-lo pessoalmente porque, ao chegar a tanto, não posso dar um passo atrás.
— Está bem! Pare com essa ladainha, por favor, pois verei o que pode ser feito.

* * * * *

Dr. Mike irritou-se com a falação da colega e se arrependeu de tê-la mostrado o suplício da pequena twa morta naquele dia. Percebeu que a experiência fora prejudicial e se sentiu culpado pelo estado de Isabelle. Por isso, ainda que a contragosto, foi falar com tenente Fred Kaka para pedir pelo problemático twa. Mukono estava detido dentro de uma viatura policial e era o único detido de toda a confusão. Dr. Mike estava acostumado a ver os ruandeses sempre tomarem as mesmas medidas em situações daquela natureza.

Por que haveria de pedir que agissem diferente daquela vez?

— Tenente Fred Kaka, vim-lhe pedir que solte esse twa!
— Fora de questão, Dr. Mike, pois o pigmeu já está em cana. Ele foi o único que recebeu uma queixa de má conduta, já que um feirante o denunciou diante da lei.
— Furtou apenas duas laranjas, tenente.
— Sei disto, todavia a lei não manda que contemos as laranjas. Talvez seja algum atenuante quando for processado.
— Sabemos que não haverá processo para ele….
— É verdade! A ordem que recebi é para dar um fim a este desgraçado, durante o caminho de volta. Não querem vê-lo no distrito policial, por ser um habitual reincidente e sua cota de arruaças já se esgotou para a polícia.
— Sendo assim, deixe-me falar com general Bagirubwira, pois vou pedir a ele que livre esse coitado. Passe um rádio para ele, por favor.
— Francamente, Dr. Mike, tratamos da prisão de um mísero twa e, se levarmos este caso ao general, ele nos matará e nos perguntará depois por que o consultamos sobre um assunto tão insignificante. Nós somos capazes de resolver isso por aqui mesmo. Por sinal, por que está defendendo um twa?
— Eles também são seres humanos….
— Ah! Ah! Ah! Boa piada! Aposto que há uma mulher por trás desse seu súbito interesse nessa gente. Foi a médica maluca que lhe pediu isso, não foi? Saiba que as testemunhas me disseram que ela enfrentou os hutus para defender este pestinha. Pode levar seu twa, Dr. Mike, mas mantenha-o longe de mim.
— Obrigado, tenente Fred Kaka.
— Só mais uma coisa: Por quanto tempo a doidona ficará em Kigali?
— Dra. Isabelle? Ela retorna para os USA depois de amanhã, pois está apenas de passagem.
— Ótimo, pelo bem dela e de Ruanda! Ela é muito perigosa, Dr. Mike. Foi o senhor quem a ensinou a lutar Kung Fu? Ah! Ah! Ah!

* * * * *

Dr. Mike ficou furioso comigo, também porque o povo fez um belo alarido. Antes de sairmos do local, os ruandeses cercaram a Land Rover da Cruz Vermelha onde estávamos eu, Dr. Mike, Rose e os dois twas, pulando, gritando, acenando e rindo em algazarra em nossa direção. Dr. Mike estava envergonhado, por passar vexame em um mercado tão popular e graças a mim. Durante o trajeto de retorno, deu-me um grande ralho, fazendo-me ver que o estágio na Cruz Vermelha fora pelos ares e nada que eu fizesse o faria me aceitar na sua equipe de trabalho. Eu avaliava onde tinha errado para ele estar possesso daquele jeito, porém estava nem aí para o fato de ficar ou não. Não fora aceita na Índia e estavam me mandando para fora da África, porém, eu possuía o meu país, que não era pouca coisa. Dr. Mike, enquanto dirigia, esbravejava contra os pobres twas que estavam acautelados no banco de trás calados como pedras, olhando-nos de viés e temendo mais a ira do inglês que os facões hutus dos quais tinham acabado de se safar. Para piorar a situação, eu sentia dores de cabeça em decorrência dos golpes sofridos, enquanto ouvia o médico ameaçar demitir Rose do Centro Hospitalar, chamando-a de incompetente, por não ter cuidado bem de mim. Não se gostou de ela ter me levado para uma movimentada feira livre de Kigali.
— Santo Deus, Rose Kabaguyoi, você é mesmo uma provinciana sem modos! De onde tirou a ideia de levar Dra. Isabelle para comprar batata no dia da chegada dela?
— Perdão, Dr. Mike, sei que errei.
— Você não entende que esta mulher não sabe como são as coisas por aqui? Ela pensa que está no Central Parque de Nova Iorque, onde se pode andar à toa.
— Desculpe-me, senhor.
Ele falava com Rose, como se ela tivesse acompanhado uma pessoa incapaz que se envolvera em um entrevero.
— Pedi-lhe para ficar de olho nela.
— Eu estava atenta e só me distraí um pouco, na hora de pagar as batatas. Quando tirava o dinheiro da minha bolsa, tomei um susto, ao vê-la se atirar, como uma louca, em cima dos hutus armados. Por Deus, é muito corajosa, pois tenho medo até de olhar para aqueles homens. Já pensou no perigo que Dra. Isabelle correu?
Os twas e Rose ficaram pelo caminho, porém Dr. Mike fez questão de deixar dentro do Hotel Mil Colinas. De tanto cuidado que estava tendo comigo, deu-me a impressão que, se eu permitisse, deixar-me-ia dentro do meu próprio quarto. Ele foi embora e eu me recolhi, e, mais ou menos às dez da noite, um funcionário do hotel bateu à porta do meu aposento, avisando-me que meus pais me aguardavam em uma ligação telefônica. Fui atender.
— Filha, está tudo bem com você aí em Kigali? — Indagou-me o senador.
— Sim, pai, está tudo em ordem. Eu estive indiretamente envolvida em um probleminha hoje à tarde, mas já está tudo resolvido.
— O pessoal da Cruz Vermelha de Nova Iorque ousou me ligar, informando-me que você retornaria amanhã. No entanto, eu os lembrei que acatara sem causar problemas terem-lhe negado estada na Índia e não aceitei, de maneira alguma, sua saída daí, antes de falar com você pessoalmente. Isto não é um absurdo?
Meu pai é um dos políticos mais importantes do Senado Americano e tem muita influência política mundo afora. É muito calmo, no entanto, quando se irrita com algo, torna-se contundente. Não sei o que ele argumentou contra o pessoal da Cruz Vermelha, todavia o certo é que resolveram me deixar em Kigali. Minha mãe, que é mais sensata, me questionou:
— Você pretende mesmo ficar nesse país, filhinha? Já estou sentindo sua falta e até a sua cadelinha está estressada de saudades.
— Não sei, mãe...

* * * * *

O pai de Isabelle sentia que tinha chegado a hora de ela assumir alguma responsabilidade na vida. Ele nascera em uma família pobre que migrara da França para Nova Iorque e vencera na política por ser um líder justo, austero e dotado de carisma. Não estava feliz com o desenvolvimento da rebenta até aquela época e, em sua opinião, um ano e meio em um país distante, mantendo contato com uma cultura diferente da qual fora criada, faria bem a garota como pessoa e cidadã americana. Viu em Ruanda uma boa opção, após o fracasso indiano, pois Isabelle conheceria a pobreza e as agruras que existem na Terra, e veria que a vida não se resume a compras nas lojas da Quinta Avenida de que tanto gostava. Além do mais, era do seu agrado o fato de os franceses estarem conveniados com o país, pois, pessoalmente, conhecia os interesses gauleses na África. Aquela república era estratégica para a França dentro da geopolítica centro-africana e fez-lhe bem saber que tinha uma filha a serviço daquele pequeno e pobre país amigo. Acabara de citar o fato no plenário do Senado e recebera congratulações. Por isto, uma mudança de plano, pelo menos por alguns dias, não era recomendável. Então a convenceu a ficar por um tempo em Kigali, para ajudá-lo em alguns discursos por um governo franco-hutu em Ruanda.
— Pai, o chefe da equipe da Cruz Vermelha daqui disse-me que não me quer na sua equipe de trabalho.
Meu pai se enervou e eu tive de repetir o que tinha dito.
— Ah! É um tal Dr. Mike, não é, filhinha?
— É sim.
— Eu já cuidei dele e não a importunará!
— O que fez com ele, pai?
— Nada de mais, filha. Somente o convenci a mudar de opinião, apesar de ser um sujeito esquisito e misterioso. Não encontrei muita coisa sobre o tipo em nossos arquivos e, sendo assim, tome cuidado com esse inglês. Se é mesmo que estejamos falando de um inglês.
— Ele não me parece uma má pessoa e somente teme por minha segurança. Além do que, o senhor sempre desconfia dos ingleses.
— Está certo, Isabelle, vai ver que é pirraça minha. No entanto, sua segurança aí não é ele e procure os militares franceses quando precisar de algum favor. Eu a recomendei ao coronel Pierre Raynaud, o chefe da missão francesa, que está ao seu dispor.
— Obrigada. Diga à mãe que lhe mando um beijo.
— Espere! Não desligue o telefone sem se despedir da sua mãe, senão ela me mata. Há outra coisa que não me agrada nessa história. Você quer que eu tire o tal Dr. Mike daí? Posso colocá-la como chefe da equipe médica e mandá-lo para outro lugar.
— Santo Deus! Não faça isso, pai! O senhor mesmo me disse que eu viria para cá com o objetivo de me tornar independente e me sai com mais uma superproteção.
— Tudo bem, filha! Nunca me lembro que você não é mais a garotinha que vivia no meu colo. Mas tenha cautela com esse Dr. Mike, pois o achei estranho quando pedi a ficha dele para o pessoal da inteligência. Tem certeza de que o elemento não é nada mais que um simples médico?
— Tenho, sim! Largue a mania de enxergar política em tudo e deixe meu estágio na Cruz Vermelha por minha conta. O que o senhor procura?
— Como queira, filha, não busco mais nada. Não quero interferir nos seus trabalhos, pelo menos desta vez, já que lhe prometi. Vou passar o telefone para sua mãe.
— Está certo, pai. Um beijo e se cuida.

* * * * *

Quando compareci de manhã ao pequeno escritório da Cruz Vermelha, encontrei Dr. Mike calado e pensativo, aparentando ter tomado, na madrugada anterior, um porre da horrorosa cerveja de banana dos twas. Não me falou nada sobre o que ocorrera na noite passada, nem acerca de suas atitudes e das reações de pessoas que o demoveram da iniciativa de me mandar de volta para casa. Eu, por meu lado, achei prudente não tocar no assunto. Dr. Mike me entregou uns formulários de admissão para eu assinar e duas batas brancas com o meu nome impresso no bolso superior esquerdo, pois eu iniciaria, imediatamente, meus plantões no CHK. Simplesmente me disse para comparecer ao hospital e me apresentar ao médico Dr. Paul Nicayenzi. Ele ficou tão contrariado com minha permanência que sequer se dignou a me acompanhar até o hospital e, quando saí, Tharcisse Mugabe estava à porta me aguardando, já que tinha me seguido até ali.
— Bom dia, Dra. Isabelle.
— Bom dia, Tharcisse Mugabe. O que você faz por aqui?
— Esperava a senhora.
— Por que você me aguardava, twa?
— Quero me despedir e dizer-lhe uma palavra de carinho.
— Não vou mais partir, Tharcisse.
O twa fez uma vívida expressão de felicidade e me falou:
— Que bom! Vejo que está muito bem com este roupão branco.
— Isto não é um roupão, twa bobo, é uma bata de médica. Estou a caminho do trabalho.
— A senhora está indo para o Centro Hospitalar de Kigali? Posso acompanhá-la?
— Pode e deve, pois não sei qual direção tomar.

* * * * *

Dias depois, Isabelle saberia que o próprio Presidente Juvénal Habyarimana conversara na madrugada anterior com Dr. Mike, exigindo a permanência dela em Ruanda. Declarara que a presença da filha de um dos mais importantes políticos americanos, de oposição ao Presidente dos USA, Bill Clinton, trabalhando para os pobres do seu país, era motivo de orgulho e uma honra impagável. Viu a estada como um sinal verde da liderança mundial ao acordo franco-hutu e fez ver a Dr. Mike que ele lidava com o provável próximo presidente dos Estados Unidos da América, ou seja, com o futuro homem mais poderoso do mundo. Explicou que a recusa da contribuição espontânea da jovem médica era uma tremenda falta de educação, seria um crime de lesa-pátria e traria sérios embaraços políticos para Ruanda, que estava em processo de colaboração militar com os franceses. Falou que pretendera oficializar, com honras, a permanência da americana no país, dando-lhe status de diplomata, contudo fora desaconselhado pelo embaixador dos Estados Unidos, que temeu atentados terroristas contra Isabelle, se sua origem política fosse largamente exposta. O diplomata expusera ao presidente que a passagem da conterrânea por Ruanda não tinha conotação oficial, no entanto, puramente pessoal, ou seja, ela estava ali, por ser uma profissional da área de saúde e não por ter pai senador americano. Não obstante ser prestigioso na Cruz Vermelha, Dr. Mike não foi páreo para tamanha pressão sobre si.

* * * * *

Minha primeira semana na Cruz Vermelha foi produtiva e, em pouco tempo, no Centro Hospitalar de Kigali, eu aprendi muito, pois à minha disposição tinha toda sorte de enfermos e doenças a serem tratadas. O maior enfrentamento medicinal para o país era a epidemia de AIDS, que se expandia largamente pela população local como uma devastadora aftosa moral. A falta de informação e os preconceitos criavam um meio generoso de contágio, tornando tão sinistra enfermidade um achaque corriqueiro para aquele povo. Comecei a ajudar Dr. Mike a redigir alguns artigos para revistas científicas da América do Norte, Europa e Ásia, pois gostava de escrever e de trabalhar duro nas pesquisas. Monitorávamos alguns afazeres de campo para grandes laboratórios farmacêuticos multinacionais e ganhávamos algum dinheiro com isso. Junto de nós, tínhamos um amplo campo de pesquisa médica, já que a desgraça dos ruandeses era fonte de informação para a saúde do outro lado do mundo. Com a execução dessas atividades, consegui desarmar Dr. Mike em relação à minha pessoa e ele passou paulatinamente a admirar e reconhecer minha importância para o Centro Hospitalar e para o encaminhamento dos seus trabalhos de pesquisa médico farmacêutica. Comecei a compreender que seu negócio na África não era tão simplesmente assistencialista, visto que ele era um exímio empreendedor e sabia gerar riqueza. Não havia como negar que eu era uma parceira ideal para ele, pois além de secundá-lo trabalhando feito uma insone mula de carga, não exigia nenhuma remuneração em troca. Para que iria querer dinheiro, se minha família não sabia sequer o que fazer com o tanto que possuía? Eu não conseguiria gastar o que tinha na América e, em Ruanda, despendia muito do meu próprio bolso em prol das pessoas paupérrimas, famintas e desprovidas de recursos. Não queria saber o quanto Dr. Mike ganhava com seus relatórios de monitoramento de suas pesquisas e só exigia que me repassasse um pouco para obras filantrópicas. Com o passar dos meses, adquiri uma imagem inusitada em Kigali e adjetivaram-me de excêntrica, pois uma coisa me atrapalhava: a amizade com os twas. Nem os hutus nem os tutsis compreendiam por que eu me envolvia cada vez mais com eles e, por meio de Tharcisse Mugabe, aproximei-me deles e da sua comunidade local. Desde o incidente na feira livre, meu nome ganhara notoriedade no lugar e associaram o meu comportamento estranho para os padrões locais às crenças e ao modo de vida dos twas. Apesar de os kigalenses não me verem com cigarros entre os dedos, não consegui apaziguar o espírito público ou evitar boatos de que eu fumava maconha, assim como, ludicamente, faziam os meus pequeninos companheiros pigmeus.

Em uma reluzente e morna tarde de domingo, Dr. Mike me levou para passear de carro pelo que chamava de Kigali Rural, que, para mim, não passava dos arredores da cidade. Paramos no píncaro de um cerro e ficamos a admirar o vale que se espraiava lá embaixo, de onde viéramos. Pelo sim, pelo não, aproveitei para lhe comunicar que não pretendia permanecer no Hotel Mil Colinas porque, como passaria muito tempo na cidade, tinha decidido alugar uma casa, para desespero dele, que me queria vivendo na segurança de um hotel. Aconselhou-me a não morar sozinha.
— De maneira alguma, Dr. Mike. Não posso residir em no Mil Colinas e, sinceramente, não sei como consegue. Uma mulher necessita de alguma privacidade.
— Dra. Isabelle, é perigoso uma dama isolar-se em Kigali e não conheço outro caso destes, nos dias de hoje.
— Deixe de ser exagerado, doutor! Tenente Fred Kaka me deu uma arma, para minha proteção.
— Que tipo de arma?
— Um fuzil.
— O quê? Puxa vida, você deve estar de brincadeira comigo.
— Ah! Ah! Ah! Estou brincando, pois ele me deu esta pistola aqui, quando eu lhe disse que moraria só.
Abri minha bolsa e lhe mostrei a arma que me fora dada por tenente Fred Kaka: uma pistola Taurus. Ao percebê-la ensaiada em minha mão, o médico arregalou os olhos.
— Cuidado, Dra. Isabelle! Não brinque com isso e aponte-a para outro lado.
— Não se afobe, ela está travada. Preste atenção.
Engatilhei a pistola e, no instante seguinte, mirei. No terceiro piscar de olhos, desferi três tiros exatos que partiram ao meio o fino caule de uma jovem grevílea que pendia ao vento no cume da serra. Dr. Mike, após o susto, aplaudiu-me e riu da minha perícia e atrevimento com a arma.
— Estava errado ao seu respeito e percebo que Ruanda é que deve temê-la. A cada dia, faz algo que me surpreende, pois é uma jovem de valor. Gostaria de ter uma filha assim.
— Credo! Já me basta um pai zeloso.
Dr. Mike riu outra vez, pois estava assaz feliz.
— Ah! Ah! Ah! Está certo, doutora.
Os meses haviam passado e o meu relacionamento com Dr. Mike estreitou-nos os laços. O trabalho até altas horas da madrugada nos uniu, até porque a solidão produzida pela minha experiência em um lugar tão distante entregou-me aos encantos melodiosos do médico inglês. Ele era um senhor elegante, nobre e determinado, como um inglês típico. Aos poucos, nossa conversa foi ficando íntima, pois a bucólica paisagem e a brisa dum aprazível final de tarde ruandesa me encheram de romantismo, amolecendo-me a membrana que o permitiu entrar. O anoitecer empurrava as últimas réstias de luz por sobre as colinas adiante, quando dei-me ao ardor crepuscular e aos beijos daquele homem pela primeira vez. Não sei se por amor ou por carência me enrosquei em seu ser e apesar de saber que ele era um galanteador, não me senti tentada a dizer-lhe não. Entreguei-me como uma Troia que abre as portas para a dominação, ainda que incertezas povoassem minha alma. Na África, ele era meu conselheiro, amigo e orientador e, a partir daquele momento, o meu consorte. Eu lhe dava mais motivos para se preocupar comigo, durante minha aventura no país, que caminhava para uma forte ebulição e convulsão social, pois o reinado das trevas chegaria a Ruanda. Eu a amar, no princípio, sem saber que o país, no final, espargiria no solo sangue em volume infinitamente superior às viscosas gotas de suor e mel que nos uniam por sobre a relva de uma colina em Kigali.




3 – OS TWAS


O final do século XIX deu início a uma redução considerável das florestas centro-africanas onde os twas mantinham um modo de vida primitivo e puro como caçadores e extratores de recursos naturais. A criação de áreas de treinamento militar e de extensos parques nacionais, em atendimento ao clamor mundial pela preservação do meio ambiente, obrigou-os a migrar, em grande número, para as periferias das cidades, sobrevivendo na completa penúria, em sua maioria. Muitos pigmeus passaram a subsistir exclusivamente da mendicância, em virtude da sua inaptidão técnica para competir com tutsis e hutus por colocações profissionais. Vários se mantinham da realização de serviços de pouco valor para os membros das outras etnias e alguns poucos do arrendamento ou ocupação ilegal de terras. Somente 1,6% dos twas possuíam terra cultivável suficiente para sua subsistência e 91% deles não tinham a mínima educação formal e eram analfabetos. A maioria não tinha registros perante a burocracia estatal, o que inviabilizava o acesso à saúde, escolas e verbas de programas sociais. Apresentavam uma alta taxa de mortalidade infantil e, em algumas comunidades, cerca de 60% das crianças não conseguiam chegar ao quinto ano de vida. Nos meados de 1993 e 1994, os hutus e os tutsis afirmavam que a miséria dos twas decorria de não quererem interagir com os outros grupos étnicos hegemônicos e até mesmo as características de povo nômade eram vistas como expressão de atraso cultural. Eles compartilhavam os recursos que conseguiam e, quando um indivíduo caçava, não acumulava o excedente, pois um pigmeu que tentasse não repartir o que tinha de sobra corria o risco de ser punido pela maioria com a perda do excesso.
No meu segundo mês na Cruz Vermelha, aceitei um convite de Tharcisse Mugabe para conhecer a vila dos twas de Kigali. Dr. Mike não quis ir comigo, pois teria um encontro, no Chez Lando, com o pessoal do partido do governo do qual os franceses, políticos hutus radicais e o próprio Presidente Juvénal Habyarimana iriam participar. Para que o médico concordasse, sem sobressaltos, com minha ida à aldeota dos pigmeus, precisei me acercar da companhia de Rose, do namorado dela, Elizaphan, e de Padre Jumpe, que possuía larga experiência caritativa no trato com os pobres. O vigário era um missionário angolano de 42 anos que, segundo ele mesmo, o bom Deus fez ir ao gueto para confortar os desvalidos e evangelizar os ímpios, através de um ministério de excluídos. Supunha-se medianeiro dos negócios entre o céu e a terra. Elizaphan era um hutu de 29 anos que trabalhava como agricultor na Fazenda Boa Esperança e, a despeito de ele e Rose serem de etnias diferentes, davam-se bem.
Tentei conseguir a liberação da Land Rover da Cruz Vermelha utilizada por Dr. Mike.
— Não, não e não, Dra. Isabelle!
— Ora, esse veículo não é seu, Dr. Mike.
— Por acaso, você fará algum trabalho para a organização na aldeia dos twas?
— Não.
— Sendo assim, desista, pois eu não lhe entregarei a chave desta picape.
Na esperança de convencê-lo a me entregar o veículo, menti.
— Saiba que farei um relatório da visita para os Médicos sem Fronteiras com foco nas doenças e necessidades básicas das crianças pigmeias.
— Mal posso crer que passou a fazer pesquisas de campo por conta própria.
— Você não acredita, por se achar o único capaz de ser notado pelos organismos internacionais neste país.
Dr. Mike não nos liberou o veículo, quando eu estava prestes a desistir da visita, calhou de Elizaphan falar:
— Dra. Isabelle, pedirei ao motorista do caminhão da Fazenda BE que nos deixe no local.
Ele não estava em Kigali tão somente para acompanhar sua noiva Rose, visto que também fazia o serviço de entrega do fabrico da Fazenda BE no mercado local. Era complacente com alguns amigos feirantes, disponibilizando os produtos pela manhã, para somente receber o pagamento ao final da tarde após a sua comercialização. Ganhava, deste modo, uns trocados sem conhecimento do patrão. Ele conseguiu que o caminhoneiro nos levasse ao povoado dos twas e depois do expediente passasse por lá para nos apanhar. Achei uma boa solução para o problema porque não aprovara a sugestão de Dr. Mike de deixar a visita para outro dia.
Ao chegarmos à aldeota dos pigmeus, fomos cercados por saltitantes, magras e seminuas crianças pequenininhas que me tomaram por alvo principal da sua curiosidade. Tive de segurar as minhas calças para que não fossem arrancadas pelos diabretes. Perguntei a Tharcisse Mugabe:
— O que estes pirralhos querem e por que me agarram assim?
— Eles estão curiosos, Dra. Isabelle.
— Com o quê?
— Estranham sua cor e suas vestes masculinas, mas acham a senhora bonita e exótica também.
— Pois então os agradeça e tire-os daqui porque estão a me sufocar, Tharcisse Mugabe. O que dizem?
— Estas crianças falam rukiga e kinyarwanda, e algumas, dependendo da vivência, conhecem um pouco de francês e inclusive já tem quem apareça na vila falando algumas palavras em inglês.
— Onde elas aprendem todo esse calão?
— Na rua, pois quase todas mendigam em Kigali, onde mantém contato com diferentes pessoas.
— Elas vão sozinhas esmolar?
— Sim, Dra. Isabelle, já que seus pais, quando não vivem da mendicidade, têm outros afazeres. As menores andam acompanhadas dos responsáveis, porém, muito novas, ganham o mundo por si mesmas.
— Elas não comparecem a escolas?
— Não. É raro um twa saber ler como eu.
Após a intervenção de Tharcisse Mugabe, os esqueléticos e pobres fedelhos me deixaram um pouco sossegada e pude, assim, perceber o que havia em minha volta. O cenário era de penúria, pois a mal-ajambrada aldeia continha uma porção de minúsculas casinhas de um vão feitas de palhas de bananeira. Mais pareciam tocas ou ninhos de grandes pássaros. Já os afortunados possuíam choupanas de sapê com paredes feitas de juncos ou finas varas de bambu entrelaçadas e preenchidas com barro grudento e de teto de palha. As casas se estendiam ao longo dum barranco e o local foi o único pedaço de terra em que puderam se fixar sem serem despejados pelos latifundiários ruandeses.
Falei para o reverendo:
— Como pode haver tanta miséria em pleno final do milênio?
— Dra. Isabelle, o mundo é um ambiente iníquo e, por isto eu trago a palavra do Mais Alto para os desamparados.
O clérigo resolveu rezar uma missa no povoado de gente pobre e, de início, acreditei ser oportunismo da parte dele.
— Padre Jumpe, estas pessoas não estão à espera de orações, pois precisam de assistência material urgentemente.
— Se queria trazer o pão, por que se acercou de um reverendo? Melhor seria ter trazido o padeiro.

Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...

O religioso iniciou uma bendizente oração que foi sentidamente acompanhada por muitos no vilarejo. Os twas não entendiam o significado daquelas frases, que recitavam trechos do sermão da montanha, contudo, criam se tratar de algo importante e inebriante para eles, pois afiavam ouvidos largos. Então tornou-me ao juízo os ensinamentos de Santo Agostinho de que a fé dispensa compreensão: credo quia absurdum. Ficaram com os olhos fixos na augusta figura do pároco atentos à pregação. Eu imaginava o que se passava pelas mentes dos pequenos e, talvez, aceitassem que o credo lhes trouxesse boas novas dum futuro melhor.

Jesus, pois, vendo as multidões, subiu ao monte; e, tendo se assentado, aproximaram-se os seus discípulos; e ele se pôs a ensiná-los, dizendo:
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos; bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus.
In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen.

A prédica de Padre Jumpe, em meio à agrura daquelas pessoas fracas, eram-lhes um convite à triste resignação cristã. Apesar disto, ele me pareceu ser ele um zeloso colaborador dos pigmeus, pois incentivava-os a exercer o ramo de produção de flores de corte para os velórios de Kigali. Após a breve missa celebrada em campo aberto, ele, na companhia de Tharcisse Mugabe, a quem chamava de gestor do projeto, nos levou a um local plano por trás de um barranco onde os pigmeus cultivavam algumas espécies de plantas tropicais.
Aqueles canteiros repletos de flores foram um dos lugares mais bonitos em que já estive em minha vida e sua dimensão excedia um simples jardim, por se associar ao pão de uma gente carente na forma de um santuário voltado à obra do Iluminado. A plantação de flores dos twas emanava um perfume magnífico, enquanto borboletas voando de flor em flor lembravam gravuras de livros de contos infantis americanos que meu pai lia para mim, quando eu era criança e teimava em não dormir. As flores adornavam a paisagem em minha volta.
Tharcisse Mugabe e Padre Jumpe me explicaram que havia algumas variedades de flores em nosso entorno e o cura, com sua voz melodiosa de canto gregoriano, falou:
— Nós optamos pelas flores tropicais destinadas ao corte, Dra. Isabelle porque são perenes, de rara beleza e se prestam aos eventos funerários tão comuns neste país. Por enquanto, negociamos apenas flores, todavia, em um futuro próximo, quem sabe, não vendamos mudas também e tornemos este pequenino país um imenso jardim.
— Decerto, padre, é possível perceber, neste lugar, a santidade a que se referiu há pouco na sua pregação.
O religioso me pegou pelo braço e me levou com ele para um passeio pela plantação dos twas.
— Vamos, Dra. Isabelle, pois formarei um lindo buquê em agradecimento à sua devoção.
Com uma tesoura em punho, foi, em passos lentos, cortando uma de cada espécie de flor do jardim. Juntava-as na minha mão, formando um lindo e multicolorido arranjo floral.
— Esta vermelha pequena é uma flor do antúrio, muito comercializada no mundo todo.

Ele me entregou a antúrio e a beijei!

— Esta flor vermelha e amarela é a helicônia, desta planta com as folhas parecidas com as da bananeira. Não se sabe quantos tipos existem no mundo.

Uma helicônia juntou-se à flor do antúrio em minhas mãos!

— Esta outra é a que mais aprecio, a flor da estrelícia, que é originária da África do Sul é também conhecida por ave-do-paraíso em decorrência do seu formato peculiar.
Recebi a admirável flor com formato de pássaro que, de tão bela, nada devia às aves e parecia querer ser uma delas ao mudar de reino.
— Estas duas são as flores do gengibre ornamental. O gengibre é uma planta asiática originária da ilha de Java, da Índia e da China de onde se difundiu pelas regiões tropicais do mundo. Há duas espécies desta planta: a primeira é a gengibre abacaxi porquanto sua inflorescência se assemelha ao ananás e a segunda é chamada de gengibre magnífico ou colmeia, por lembrar uma construção das abelhas.
Finalmente, em minhas mãos, tive um lindo e fresco buquê de flores como jamais recebera. Não imaginara até então que as mais lindas flores ser-me-iam entregues pelas mãos de um simpático sacerdote angolano.
— Nunca pensei que existissem flores com o nome de gengibre, padre.
— Pois há e veja esta outra aqui, a flor do bastão do imperador que do mesmo modo é uma espécie de gengibre.
— É uma flor vermelha encantadora e, sendo assim, penso ser a mais linda entre todas.
— Tenha calma, doutora, e não se apresse em conclusões, pois as flores que tem em mãos estão simbolizando a morte neste país.
— Morte? E por qual razão?
— Elas estão sendo adquiridas para ornamentações de funerais.
— Entendo que têm boa saída por existirem muitos eventos fúnebres neste lugar.
— Lamentavelmente, sim, Dra. Isabelle. Iniciamos este projeto com os twas para celebrarmos a vida por meio da criação divina do nosso Pai Eterno, entretanto, estamos ornamentando o passamento. Não sei se estou sendo ético, na qualidade de servo do Senhor, ao continuar à frente desta empreitada.
— O que tem em mente?
— Penso em sua benignidade e sempre imagino como é boa para os twas.
— Ora essa! O senhor não está falando sério comigo.
— Por que eu brincaria, minha filha?
— Não conheço nada de flores.
— Contudo entende do amor e da justiça, e isso é tudo que se precisa para lidar com esta gente sofrida. Imagine que a atividade de comercialização de flores é um aspecto a mais da sua medicina para eles, visto que, se não comem, morrem e, se comem mal ou pouco, aumentam os seus trabalhos clínicos.
— É verdade, padre. O senhor está certo e foi perspicaz a ponto de prosperar no comércio de flores.
— Preciso que esteja presente em apenas alguns momentos nesta comunidade, pois o conhecimento já foi difundido. Olhe para este simples, mas pertinaz twa, Tharcisse Mugabe. Ele é um ser humano inteligente e versado neste afazer, até por amar as flores. Sabe muito, ombreia com os melhores técnicos e não mais necessita da minha assistência técnica.
Padre Jumpe me acompanhou até uma estufa rústica erigida pelos twas onde existiam inúmeras plantas em vasos. As flores eram das mais lindas que eu vira na vida e o perfume que exalavam era doce e magnífico. Existiam espécies nas cores violeta, vermelha, branca e rosa.
— Nesta estufa, o tesouro desta plantação fica protegido, Dra. Isabelle, e estes lindos exemplares são violetas-africanas. São flores de vaso que chegam aos lares e celebram a vida todas as manhãs em que desabrocham e perfumam o ambiente. A violeta-africana é considerada uma bela miniatura do reino vegetal e em muitos lugares, ela é conhecida por violeta do cabo. Ela possui cores variadas, podendo ser branca, roxa, bicolor e de diferentes tonalidade e era a preferida dos antigos gregos e símbolo de Atenas. Os romanos a usavam em requintados perfumes femininos.
Após termos momentos de encantamento, Tharcisse Mugabe nos encaminhou a uma fumarenta e quente palhoça na qual funcionava uma pequena olaria, já que o trabalho com barro é uma marca tatuada na existência dos pigmeus. Ao chegar ao local, percebi que cerca de quarenta mulheres trabalhavam sentadas ou ajoelhadas, moldando argila para fornejarem potes, panelas, pratos e artesanatos em geral para constituírem uma bela manufatura. Imaginei que não haveria dificuldade de encontrar mercado para tal fornada, dada a qualidade e beleza dos objetos que a compunham. Cada peça recebia uma camada de tinta preta fosca, como base por sobre a qual as twas pintavam figuras coloridas e alegres. Eu fiquei impressionada de ver uma gente tão sofrida compor peças com temática tão vibrante. Os potes dos twas expressavam a personalidade de um povo que não via os percalços da vida como empecilho à busca da felicidade. Homens vinham das terras pantanosas de Bugesera com barro acondicionado em lençóis úmidos que carregavam nos ombros.
Logo chegou a hora de partirmos e deixarmos o assentamento pobre. Entramos no caminhão da Fazenda BE e iniciamos o caminho de retorno para a Kigali Urbana, já que a povoação dos pigmeus ficava nos arrabaldes do lugar, na Kigali Rural. Logo após pegarmos a estrada de volta, cruzamos com um comboio policial indo em direção à comuna e, de cima da carroceria, vi em uma camioneta Toyota algo que me pareceu ser um enorme animal morto. Perguntei aos presentes:
— O que era aquilo no veículo? — Elizaphan me respondeu:
— Eles estão com pressa e passaram rápido, contudo eu acredito ser um gorila abatido, Dra. Isabelle.
— Gorila? Por que o levam para a aldeia?
— Não tenho a menor ideia, doutora.
A tutsi Rose Kabaguyoi falou:
— Eu penso que os hutus tentam encontrar quem matou aquele bicho e buscam culpados nesta freguesia. Notei que entre eles estão hutus da polícia, da guarda-florestal e da Interahamwe e, por azar, a situação não está boa para nossos amigos, ali atrás.
— Desgraçadamente, em Ruanda de hoje, um gorila vale mais que toda a gente daquela aldeia, Dra. Isabelle. — Falou Padre Jumpe.
— Por quê, padre?
— Entra mais dinheiro neste país para a preservação dos gorilas que para melhorias das condições de saúde dos twas e estes animais são fonte de renda para muita gente importante, por meio do turismo ecológico.
— Pois então vamos voltar para ajudá-los!
Elizaphan contra-argumentou em tom de incredulidade diante da minha proposta.
— Cruz credo! A senhora deve estar louca, Dra. Isabelle, pois não devemos retornar agora porque aquela gente é da pesada.
— Pois eu não sou boa coisa também e o padre me elegeu protetora dos twa. Se não quiserem vir comigo, deixem-me aqui. — Dirigi-me ao condutor do caminhão. — Pare este caminhão, motorista!
Os homens já se imaginavam adiante entrando em Kigali, quando ouvimos estampidos de tiros vindos do local de onde partíramos e, instintivamente, o motorista acelerou o veículo para se afastar do perigo. Eu, por meu lado, do alto da carroceria, encostei minha cabeça na boleia, bati na lataria e falei para ele:
— Pare, motorista, pois temos de retornar!
Resolutamente, o homem manteve o trajeto e inclusive acelerou ainda mais, após escutarmos outros tiros vindos do povoado dos twas. Não resisti e gritei:
— Pare este carro, homem de Deus!

* * * * *

Padre Jumpe, percebendo a aflição da amiga que acabara de invocar o poder de Deus, tomou-lhe o partido e, então, retornaram ao vilarejo. Ao chegarem, encontraram dois twas mortos e caídos no pátio, um homem e uma mulher. Formavam um casal e deixaram órfãos, sendo que a esposa tombou por uma perfuração no peito, ao tentar acudir o marido que jazia agonizante, após ser alvejado por arma de fogo. Mukono, ademais, fora ferido na perna sem maior gravidade e estava sentado sobre uma pedra tentando conter o sangue que saía do seu ferimento. A súcia interahamwe chefiada por Canisous Rubuga estava no local com a contumaz vilania. Ele era um psicopata nato e um sujeito pouco inteligente e excessivamente violento. Em uma sociedade justa e regrada, seria encaminhado para isolamento com tratamento medicamentoso. No entanto, achava-se um hutu da gema e com o dever moral de lutar em defesa de sua etnia, não medindo as consequências desta opção desregrada. Ele era um tipo perigoso dotado de uma maldade congênita que o guiava ao longo de uma vida proscrita da legalidade, agindo com violência desmedida, sem constrangimento ou sentimento de culpa e sem se importar com a torpeza dos seus atos de crueldade.

* * * * *

Eu perguntei aos estranhos:
— O que está havendo aqui? Por que vocês estão atirando nesses pobres-diabos?
— Estamos cumprindo um mando de prisão contra os twas. — Falou-me o líder hutu.
— Qual é a acusação?
— Homicídio.
— Francamente, que homicídio? Quem eles mataram?
Respondeu-me com o desatino.
— Um gorila das montanhas.
Os twas adentravam clandestinamente nas reservas florestais em busca de recursos e isso gerava a desconfiança de que estariam por trás de mortes de gorilas, quando ocorriam, já que as pessoas acreditavam que os pigmeus comessem de tudo. Na realidade, abatiam apenas pequenos roedores para sua subsistência. O gorila das montanhas é um animal protegido por lei, que vive na Serra Vulcânica do Virunga, uma estreita faixa de terra montanhosa entre os países do Congo, Uganda e Ruanda.
— Essa é muito boa! Quem mata um gorila não comete homicídio algum, pois teriam cometido este delito se tivessem assassinado um humano e não um animal irracional.
— Para nós é a mesma coisa porque o gorila é um bicho sagrado e protegido por lei. N se pode matá-lo, doutora.
— E tirar a vida de gente pode? Por que razão vocês alvejaram estas pessoas? — Falei já indignada com tamanha impiedade.
— Não assassinamos ninguém, pois estes twas se evadiram quando chegamos ao local. Quem não deve nada não foge da gendarmerie.
A captura de caçadores de gorila era bem-vista nos meios policiais e, como a notícia já tinha chegado ao mundo editorial, encontrar culpados era uma questão prioritária para as autoridades policiais. Como prova do crime, os guardas-florestais apresentaram pequenos apetrechos de caça, provavelmente, confeccionados pelos twas. Tharcisse Mugabe falou, então:
— Essas armadilhas só prestam para bichos pequenos e não têm efeito em um gorila desse tamanho.
— Sim, mas, se vocês caçaram no parque, podem ter feito algo além de abater ratazanas.
Mukono, um twa corajoso que até então permanecera calado, decidiu assumir a culpa.
— Esses instrumentos são meus e fui eu que os pus no mato.
Canisous Rubuga, ao ouvir a confissão, sacou seu facão e caminhou em direção ao pequeno twa, com a intenção de retalhá-lo, porém Padre Jumpe interveio em favor de Mukono, pondo-se diante do interahamwe.
— Você não o matará, miliciano, pois já houve muitas mortes. Este rapaz confessou ser dono de armadilhas para caçar roedores e não primatas mais largos que você. O delito que cometeu ao violar colinas protegidas por lei deve ser alvo de normas escritas e não desse seu machete.
Canisous Rubuga ficou furioso e redarguiu à provocação.
— Saia da frente, padre, pois matar gente de Deus dá azar e não quero fazer isto. Deixe-me cumprir o meu dever e procure uma igreja para fazer o seu trabalho também.
Eu tomei a iniciativa e contradisse Canisous Rubuga.
— Este twa precisa de atendimento médico e, na qualidade de médica, devo levá-lo ao Centro Hospitalar, de onde não fugirá, eu lhe garanto. Procure seus superiores e peça que resolvam este assunto para você, pois se perdeu nesta ação. Não lhe bastam as duas mortes que esta operação desastrada causou?
Na época, os franceses treinavam os hutus nas reservas naturais pretextando formar guardas-florestais, quando, na realidade, davam curso à milícia hutu extrema Interahamwe. Provavelmente, eles, durante seus treinamentos, encontraram o gorila morto e tentavam imputar a culpa a alguém e, assim, mostrar serviço aos seus superiores. O chefe miliciano hutu concordou.
— Está bem, Dra. Isabelle, desta vez, que seja como quer e nós vamos deixar este twa, por enquanto, sob seus cuidados, mas esteja certa de que do hospital irá direto para um presídio aguardar seu julgamento. Este caso se refere a animais sagrados do mundo e nós, ruandeses, não queremos ser responsáveis pelo fim dos gorilas das montanhas. Se não dermos exemplo por aqui, não podemos pedir uma contrapartida do Congo e do Zaire do outro lado da reserva.
— Não seja dramático, pois não há provas contra Mukono.
— Eu não sei o que vê nesses twas, doutora, já que formam um bando de preguiçosos que vivem de esmola.
— Mendigam porque não lhes dão oportunidade de emprego.
— Como poderiam trabalhar, se não servem para fazer nada benfeito?
— Não lhes deram estudos ou formação técnica também.
— Que fique com seus amigos imprestáveis, pois temos outros trabalhos a fazer.
— Tais como matar tutsis na calada da noite?
— Ou é muito corajosa ou não tem amor à sua própria vida, Dra. Isabelle. Não deveria falar assim diante de milicianos, pois costumam reagir a insultos. Aconselho que não saia do Centro Hospitalar de Kigali, já que lá os médicos têm serventia para este país. Das ruas cuidamos nós!
— Você não está na rua, Canisous Rubuga, porque aqui fica uma vila abençoada pelas palavras de Deus proferidas por Padre Jumpe.
— Fique com seus pigmeus, doutora, no entanto, tome cuidado para não cair nos vícios de álcool e droga.
— Obrigada pela preocupação, mas esteja tranquilo porque não costumo ter hábitos prejudiciais à minha saúde e não esqueça que compreendo os efeitos dos entorpecentes, além de saber diagnosticar uma mente doente.
Eu fiz um torniquete em Mukono e o levamos para o hospital. Os pequenos aldeões estavam sofrendo e faziam um silêncio doloroso em respeito aos falecidos que eram queridos entre eles. Muitos culparam Mukono pelo ocorrido e mesmo havia um grupo que tentava, de longas datas, expulsar o indômito e divergente pigmeu da comunidade de Kigali, sob o argumento de que gerava discórdias e aglutinava problemas. Mesmo assim, alguns o tinham por boa nomeada, por verem nele a manutenção da espiritualidade ancestral do povo indígena das florestas. Algumas demonstrações do poder de Mukono serviam de argumento para os mais velhos e saudosos acreditarem que ele seria, em breve, um dos guias espirituais dos twas, pois nele residiam os ideais do outrora glorioso povo. Mukono, um twa ousado e voluntarioso, era o mais forte elo entre sua comunidade e as crenças seculares que ele externava por meio de rituais de magia e alucinações, sob o efeito de drogas e ervas das florestas somente por ele conhecidas e manipuladas. Afastados do convívio das matas, os jovens estavam perdendo a identidade selvagem extratora e coletora. Mukono era uma grata exceção à regra e, por isto, querido pelos idosos, ainda mais, por ser da estirpe milenária dos grandiosos twas. Enquanto os anciãos temiam a dispersão dos indivíduos da sua etnia, o pigmeu problemático não se acovardava diante do perigo e, tampouco negava suas raízes silvícolas.
Quando chegamos à porta do hospital, Dr. Mike estava à minha espera e me pareceu preocupado com minha segurança, pois a notícia de que a Interahamwe tinha ido à aldeia twa com pretensões vandálicas, cumprindo um mandado de prisão, o deixara aflito. Por pouco, não o encontramos no caminho, pois já estava se dirigindo com a Land Rover para a estrada que levava à povoação dos twas.
Era necessário iniciar, de imediato, os procedimentos medicamentosos para assepsia e sutura do ferimento na perna de Mukono e, então, dirigi-me ao médico.
— Não vai me ajudar?
— Não, Dra. Isabelle, esse ladrãozinho é um assunto seu. Esse twa não vale nada, e já lhe disse isso antes. Felizmente, o ferimento não é grave e pode tranquilamente se incumbir do caso, na companhia da senhorita Rose. Eu igualmente lhe avisei que os twas são sinais de encrenca. Espere e verá.
Às vezes, o médico inglês, com uma rotineira lengalenga para cima de mim, dava-me nos nervos e eu haveria de não mais cair no logro e palavreado daquele homem.
— Muito obrigada pela sua preocupação, mas não me venha com reprimendas ou sermões, Dr. Mike, porque já ouvi um hoje. E me dê licença!
Entrei com Rose, improvisamos uma sala de cirurgia para tratamento de Mukono. Tudo correu bem e, de caso pensado, dei-lhe um forte sedativo por via intravenosa que o faria dormir por horas afinco. Quando saí e cheguei à frente do hospital, havia dois milicianos do outro lado da rua sob o podocarpo, inquietando Tharcisse Mugabe em seu ponto comercial. Aproximaram-se quando me viram e um deles me perguntou:
— Onde a senhora deixou o criminoso, doutora?
— Que criminoso?
— O twa Mukono. Nós trouxemos as algemas e viemos buscá-lo!
Fiz uma expressão séria e exagerei acerca do quadro do paciente, visando obstar a incumbência de arrastarem com eles o twa.
— Vocês querem prendê-lo? Pois então fiquem sabendo que não darei alta a este paciente, por causa do seu grave estado de saúde. Ele está sob efeito de forte medicação, já que está com uma terrível infecção na perna e, provavelmente, não acordará até a noite de amanhã. Vocês não conseguiriam removê-lo deste hospital nas condições em que se encontra, sem uma ambulância especializada, pois, se desligarmos os aparelhos a que está ligado, morrerá no minuto seguinte. E mais uma coisa: ele está acometido de uma grave doença contagiosa e, se vocês o levarem, procurem não respirar profundamente ao lado dele.
— Não nos relataram que o caso era tão grave e nos mandaram levá-lo sem demora, pois tomou apenas uma facadinha boba.
— Facadinha boba? Não me façam rir. Vocês estão com um mandado de prisão?

* * * * *

Os interahamwes não compreendiam a fundo o que estar acometido poderia significar na ocasião, no entanto, perceberam, pela expressão da doutora, que não seria boa coisa para eles. Também não sabiam o que era mandado de prisão, todavia entenderam que a americana queria algum comprovante ou recibo em forma de papel. Perceberam que estavam em uma situação delicada, apesar de terem imaginado que, quando chegassem ao local, encontrariam um ambiente receptivo e preparado para a ocorrência. A prisão do twa não tinha sido previamente combinada e não lhes foram dadas claras ordens de utilizar a força bruta. Saíram de lado, conversaram um pouco entre si e chegaram à conclusão de que o melhor a fazer era ir embora e somente falarem com seu chefe, Canisous Rubuga, no dia seguinte. Ele estava na região de meretrício de Kigali, provavelmente embriagado ao lado da sua prostituta favorita, Anne-Marie Kenyama, e não sentiria a falta deles naquela noite. Mukono estava salvo de outra enrascada e as formas inesperadas como se safava de situações perigosas e sinistras aumentavam o carisma e a aura mística em torno dele entre os pigmeus. Havia quem acreditasse que Mukono tinha o corpo fechado e que nada ou ninguém conseguiria exterminá-lo

* * * * *

Com o tempo, percebi que Padre Jumpe tinha descoberto um meio pouco ortodoxo de angariar dinheiro, apoderando-se dos conhecimentos de Mukono e Domitilla, sua mulher twa, acerca de ervas coletadas nas florestas de Ruanda. Domitilla era uma matriarca, conselheira e obstetriz dos twas quando necessário.
Em uma oportunidade, repreendi o vigário e cobrei-lhe que fosse um pouco piedoso em relação à pobreza dos outros.
— O senhor não tem vergonha, Padre Jumpe? Está a lucrar à custa dos pobres twas com artimanhas teológicas!
— Não são todos os pigmeus, Dra. Isabelle, pois me apoio apenas nas observações empíricas de Domitilla e Mukono sobre ervas selvagens.
— É bem pago por este trabalho?
— Por Cristo, não ganho muito! Mantenho contato com um trabalhador comum em Angola que presta serviço para alguns laboratórios europeus por conta própria.
— Por que esse freelancer preguiçoso não vem aqui e entra na selva como Mukono faz toda semana?
— É muito ocupado e além do que é perigoso adentrar nos parques florestais deste país.
— E o dinheiro? Quanto já ganhou? Quero saber isso direito para dar a parte que cabe ao casal de curandeiros.
— Eu sou um homem de Deus, minha filha, e não procuro o bem material.
Padre Jumpe era benévolo, um bom beato, todavia pouco, além disso e eu sabia que mentia ao explorar a boa vontade e ingenuidade de Mukono e Domitilla. No início, não me preocupei com o seu assédio aos twas, no entanto, ao intensificar os contatos com os pigmeus, percebi que as plantas que tinham catalogadas informalmente nas suas mentes poderiam conter princípios ativos de valiosa generosidade para a farmacologia mundial e seus empresários.
— Não me venha com esse papo, seu prelado capitalista!
— Dra. Isabelle, a senhora é perspicaz e, assim sendo, tenho pena de Dr. Mike em suas mãos! Ah! Ah! Ah!
Na oportunidade, estávamos em minha residência e pegamos na palavra até alta hora da noite, quando Padre Jumpe me confessou de boa-fé que contrabandeava qualquer panaceia, quer fosse planta ou animal minúsculo, que contivesse, no seu interior, alguma substância resistente às pragas, que devastavam as plantações mundo afora, e às doenças dos seres humanos e animais em geral.
— Pense bem no que fará, Dra. Isabelle, pois lhe confesso meu deslize, por sugestão dos meus superiores, já que seu pai, em Washington, vigia os caminhos que a filha percorre e chegou a mim. Ele ameaçou nos denunciar e só não o fará se a senhora lhe disser que tenho bom coração.
— O meu pai lhe disse isso?
— Em puríssimo som! Ele tampouco se deu ao trabalho de ligar para a senhora, pois me incumbiu de esclarecer o caso e fazê-la telefonar para ele. Deixou-me com uma fina, resistente e encerada corda em volta do gogó.
— Não pode ser! Ele teve essa capacidade?
— Pois é, teve. Seu pai é um político astuto e atento.
Eu começava a ficar do lado de Padre Jumpe e contra a petulância do meu pai. Ele prometera me deixar levar a vida em paz em Kigali, porém, outra vez, dava uma amostra de sua incapacidade de me dar corda adiante.
— Há outra coisa importante que eu queria que levasse em conta.
— O que mais eu hei de saber?
O angolano Padre Jumpe me contou:
— Os meus clientes estão satisfeitos com o trabalho de Mukono e Domitilla, ainda que aqueles mezinheiros desconheçam a importância do que fazem.
— O que é uma puta sacanagem, padre. O senhor é um belíssimo cara de pau!
— Eu entendo a sua preocupação, Dra. Isabelle, mas aguarde o lado bom da história.
— Estou ansiosa para saber o melhor dessa sua sagrada gula e não me faça esperar.
— Mukono não passa de uma criança crescida e malcriada, apesar de muitos falarem que ele tem facilidade de escapar das encrencas em que se mete. No entanto, eu lhe garanto que o twa ainda vive graças à nossa interferência em seu favor perante autoridades e políticos em algumas ocasiões. Há muito tempo, Mukono deveria estar do outro lado das grades e de lá ter viajado sem retorno para um pobre cemitério, mas meus patrões, que pagam muita propina neste país, já reverteram ordens de prisão contra ele.
— Por que seus chefes, simplesmente, não se apresentam a Mukono, põem-no numa residência confortável e o fazem assinar um contrato de prestação de serviços?
— Técnicos disfarçados mantêm contatos esporádicos com aquele twa, no Congo e no Burundi, visto que ele não para em um canto. O diagnóstico corrente é que o pigmeu somente é útil no seu jeito livre e selvagem. Se descobrir ser alvo de uma trama envolvendo conhecimentos sobre ervas, abandonará o que faz. Talvez vá ajudar Tharcisse Mugabe a vender seus vasos de violetas-africanas em frente ao Centro Hospitalar e a senhora passará a ter não só um, mas dois twas apaixonados.
— Ah! Ah! Ah! Isto seria o terror, Padre Jumpe. Está bem, dou-me por satisfeita e vou ficar quieta acerca deste nosso segredo. Continue com o seu creio em deus padre nesta terra colinosa, contudo não esqueça que estou de olho.
— Vamos, Dra. Isabelle, não há tempo a perder!
— Aonde? A esta hora da noite, eu devo dormir. Até mais ver, Padre Jumpe. — Falei-lhe com a voz cansada.
— Não, doutora, nós temos de correr para um telefone, agora mesmo.
— Para quê?
— Meu Deus! Vê-se que tem o raciocínio lento de um twa.
— Sem ofensas, padre, e não fale mal meus queridos amigos. Para quem vamos telefonar?
— Para seu pai, pois somente s senhora pode sossegá-lo.
Saí do conforto do meu lar na noite alta em companhia do religioso, em busca de um aparelho público que funcionasse, mas demoramos a achar um que não tivesse sido alvo de depredações. Padre Jumpe estava, deveras, ansioso de que eu mantivesse contato com o meu pai e lhe pedisse para interromper algumas investigações.
Fui com Padre Jumpe no seu veículo e rodamos por alguns bairros da cidade sem sucesso. Estive prestes a desistir; entretanto, o pároco estava irredutível.
— Por que nós não vamos ligar do Centro Hospitalar, Dra. Isabelle?
— Está louco? Não posso fazer uma ligação internacional de lá.
— Este é um caso emergencial.
— Que emergência, padre? Na realidade, vou tratar dos seus interesses e não de um caso que diga respeito a muita gente.
Após dirigirmos por um bom tempo, chegamos a uma rua animada e barulhenta e foi onde nós efetuamos a chamada telefônica. Tivemos de esperar até conseguirmos um contato telefônico com a operadora americana e nesse meio tempo, o lugar foi ficando muito agitado e borbulhante de gente. Percebi que ali ficava uma área de meretrício, pois via mulheres de trejeitos vulgares vestidas com roupas minúsculas e homens alegres e embriagados apalpando-as descaradamente. Nossa presença foi notada de imediato e Padre Jumpe me olhou comiserado, por ter me levado àquele lugar e por ele mesmo, um senhor dos evangelhos, estar presente em um ambiente pecaminoso. Na sua ânsia de ligar para o senador americano, o pároco não tinha percebido a cova em que se meteu. Então, uma prostituta se aproximou e começou a reclamar conosco.
— Ei, filhinha de papai, não vê que esse é um telefone público? Sai logo daí e deixe que outros utilizem o aparelho!
Eu fiz como se nada estivesse sendo falado e continuei tentando conseguir uma conexão aberta com os Estados Unidos. Por seu lado, a meretriz estava irredutível.
— Cruz-credo! Sai daí piranha branca, pois quero usar esse telefone!
Padre Jumpe me falou ponderadamente, temendo acontecer algum entrevero entre mim e a insolente garota, já que conhecia minha má fama de arruaceira de juízo virado.
— Venha comigo, Dra. Isabelle, pois haveremos de encontrar um telefone funcionando em algum outro lugar. Deixemos já este sítio de ócio.
— Andei demais, padre, e só saio daqui para minha casa!
— Vai com o padre e sai daí, baranga burra! Não tem medo de apanhar? O Hotel Mil Colinas agora está contratando americanas, é? — Ela percebera o meu sotaque.
Não suportei o acinte e as ofensas daquela mulher e parti para as respostas adequadas, pois nada me tinha me amedrontado até então na minha vida e não seria uma criatura desqualificada como aquela mulher que me faria acovardar.
— Quê? Pois sim! A quem você chama de piranha, mulher desclassificada?
— Sai desse telefone! Você está surda? — Açodadamente, ela tentou me arrastar pelo braço.
De repente, duas outras desairosas garotas de faces rascunhadas se aproximaram de nós, o que tornou a afronta mais ríspida. A primeira a chegar ficou confiante, em decorrência da presença das colegas, mas mesmo assim, não me intimidei. Se conseguira sair no tapa com hutus da Interahamwe armados de facões, três piranhas nervosas me afugentariam de lugar algum. Nesse ínterim, Padre Jumpe suava frio, constrangido com a situação em que nós havíamos nos metido e implorava-me para sairmos do lugar, temendo alguma violência contra nós dois. Finalmente, eu consegui contato com os meus pais em Nova Iorque.
— Mãe, pai está me obrigando a sair deste lugar e, por causa dele, vou ter de ir para mais longe, demorando para voltar para casa.
— O que este desalmado está fazendo, filha? Eu bem notei que ele está com aquele olhar de quem trama algo. Você lembra como ele fica, não é?
— Lembro, mãe. Contenha-o aí, por favor.
— Ora, ora, onde já se viu uma coisa dessas? Deixe-o comigo, filha, pois prometemos deixar você sossegada.
As mulheres ao nosso lado riam sem parar, zombando de nós em um inglês limpo e claro.
— Pai, mande-me uma mamadeira quentinha! Ah! Ah! Ah! Ah! Pai, eu quero dar! Ah! Ah! Ah! — As ofensas só aumentavam.
Eu estava perdendo a paciência com as garotas inconvenientes e insolentes. Desliguei o telefone e fui para cima da mais ousada entre elas.
— Vá se ferrar, vagabunda de terceira classe!
Tinha pegado o braço de Padre Jumpe e saíamos da rua odiosa, quando das damas exclamou:

Mãe, o pai ainda come a sua bundinha?

O caos reinou!
Eu me descontrolei completamente e, quando isso acontecia, era sinal de problemas. Parti novamente para cima da mulher-dama, agarrei-a pelos cabelos e lhe dei um tremendo soco no rosto. A ogresa caiu longe, rolando pela rua e, então, as outras duas se atiraram em cima de mim, para iniciarmos uma ruidosa briga, trocando socos, puxões de cabelo, beliscões e pontapés. Vindo de todos os lados, hutus e tutsis se aglomeraram rindo da nossa confusão, batendo palmas e atiçando a contenda. Padre Jumpe se esforçava para apartar a briga, todavia não fazia nada direito, visto que, quando segurava uma das oponentes, as outras partiam para cima de mim, batendo e apanhando igualmente. Uma das zinhas se atracou comigo, e, ao derrubar-me, apertou o meu pescoço, enroscando-se em mim de forma lasciva e sufocante com um forte abraço de pitonisa. As outras aproveitaram a oportunidade e bateram com mais força. Saúde e disposição não me faltavam, nem vontade de dar uns paus nas vadias que blasfemaram a lembrança da minha mãe. Em meio a balbúrdia, Padre Jumpe gritava:

Valha-me Deus, Dra. Isabelle! Senhoras, parem com essa desavença. Alguém ajude a parar esta confusão!

De repente, outra garota, igualmente cortesã, se atirou entre nós três e ficou do meu lado na briga. Então, a situação, antes desfavorável, começou a me favorecer, a partir da ajuda da estranha, e bati forte de imediato. De repente, uma das brigonas pegou uma garrafa vazia de cerveja Primus e a estraçalhou na cabeça da minha companheira, fazendo com que sangue escorresse pelo seu corpo. Não satisfeita, outra agressora desferiu uma pedrada no mesmo ponto onde antes o vasilhame tinha-se desfeito. A colega caiu desacordada e entrou em obnubilação, sem mais dar acordo de si. Parti para cima da rival armada e a feri com um pontapé violento, que a fez sair de combate. Neste instante, ao ver sua bem-amada meretriz ferida, o hutu Canisous Rubuga sacou uma pistola e disparou três tiros para o alto, dispersando a multidão. Aos gritos, afugentou as três arruaceiras, que foram arrastadas, acoitadas e salvas da sua ira por companheiros seus, indo para locais seguros dentro dos estabelecimentos ao longo da rua. Canisous Rubuga foi ao encontro da sua amada.
— Anne-Marie, não posso sair por um momento sem que você não se meta em confusão!
Anne-Marie Kenyama, a amante do chefe da Interahamwe, era uma pessoa valente. Argumentou, ainda tonta, em decorrência das pancadas que recebera na cabeça.
— Aquelas putas de beira de estrada estavam batendo na garota e você sabe que eu não gosto de covardia.
— Foi apenas por isso que você se meteu na rusga dessa mulher?

* * * * *

Canisous Rubuga imaginou que Anne-Marie se envolvera na confusão por causa de uma rixa anterior com uma das brigonas. Ela era insanamente ciumenta e uma das oponentes assediava seu amante. Na verdade, uma razão maior, de desconhecimento do hutu, do mesmo modo, motivou Anne-Marie. Ela levava uma vida dupla e uma das prostitutas brigonas estava bisbilhotando algumas atividades clandestinas da amante do hutu, que era uma informante da Frente Patriótica Ruandesa dentro de Kigali.
Anne-Marie Kenyama era uma tutsi de 27 anos proveniente do exílio em Uganda. Ela sentia um ódio virulento e mortal pelos hutus desde quando vira seus pais e irmãos serem mortos por membros da etnia agressora. A partir daí, acumulara remorso ao longo de uma rude rotina de sobrevivência que teve de enfrentar mesmo quando ainda era uma criança. Por muita sorte ela sobreviveu ao ataque hutu à sua residência anos atrás e jurara vingança contra os agressores, encontrando a oportunidade que queria, ao se aliar à Frente Patriótica Ruandesa na sua campanha para derrubar o presidente hutu Juvénal Habyarimana. Ela sabia que, se a desafeta a associasse aos tutsis do exílio em Uganda, sua vida nada valeria. Sua aproximação de Canisous Rubuga era um valioso meio de ela obter informações acerca das atividades dos interahamwes e dos militares franceses em Ruanda, pois, durante as bebedeiras, o hutu, espontaneamente, lhe contava fatos marcantes do seu dia a dia. Ela conhecia até a rotina de treinamento da soldadesca hutu ministrada pelos franceses nas reservas florestais. Certa ocasião, o embriagado hutu falou sobre este assunto.
— Opa! Quer dizer que o senhor está treinando para ser guarda-florestal?
— Ah! Ah! Ah! Eu vou cuidar dos animais, Anne-Marie.
Canisous Rubuga, em um de seus porres, contou mais do que deveria para ela.
— Nós estamos elaborando um plano para matarmos os tutsis.
— Fale-me novidades, já que é isso que vocês fazem todo dia.
— Desta vez porém a coisa será grandiosa.
Anne-Marie adquirira a capacidade de pressentir quando ele estava prestes a lhe dar alguma informação de valor para a Frente Patriótica Ruandesa e o escutava com atenção, até quando não dizia coisa com coisa. Serviu-lhe outro copo de Primus.
— Nós estamos detalhando um plano de extermínio de todos os tutsis.
— Que horror! Você delira, Canisous Rubuga.
— Claro que não, Anne-Marie, pois os militares discutem tudo, recenseiam e cadastram os tutsis.
— Vocês pretendem levar todos para campos de concentração?
— Não sei, mas é certo que os exterminaremos.
Essa informação foi repassada à cúpula da Frente Patriótica Ruandesa no Norte e, pela primeira vez, os tutsis ouviram falar de maneira convincente e detalhada da arquitetura de tal plano. Levaram a questão a sério e aumentaram os trabalhos de inteligência. O comandante Kagame, líder da guerrilha tutsi, decidiu que era chegada a hora de acelerar os trabalhos e resolver de vez aquela conflagração, caso desejasse ainda encontrar tutsis vivos no solo ruandês. Comentou:

Viver é esbarrar contra o futuro. Ou vamos ao encontro dele ou ele retorna para nos buscar.

A união entre Anne-Marie e Canisous Rubuga era cômoda para ela, pois não era obrigada a ir para a cama com outros frequentadores dos prostíbulos. A devoção ao líder hutu a livrava dos perigosos contatos sexuais com os tutsis e hutus que andavam pelo ambiente promíscuo, o que lhe minimizava o risco de contrair AIDS. Algumas das suas companheiras de profissão eram soropositivas, fato que a amedrontava, pois, de vez em quando, via uma ou outra inçando a doença, através de relações inseguras.
Canisous Rubuga era um túmulo diante dos homens, mas um rádio ligado, quando bêbado e excitado ao lado da ambulatriz preferida. Todos os homens que frequentavam a zona de meretrício temiam se aproximar de Anne-Marie porque ela era mulher do líder da Interahamwe, um sujeito notoriamente valente e ciumento. Por seu lado, Canisous Rubuga gostava de saber que Anne-Marie era só dele, não obstante fosse uma dama da noite, porquanto isso lhe dava certo prestígio entre seus companheiros. Ele sonhava pô-la em uma residência confortável longe dos covis imundos, proporcionando-lhe uma vida digna. No entanto, dois motivos o impediam de maneira categórica: primeiro, se ele fizesse isso, seria seu fim como líder hutu, pois seus pares de etnia não aceitariam sua convivência em termos maritais com uma tutsi; segundo, ele não queria constranger a esposa e filhos, amancebando-se com uma meretriz. Este dilema era um dos motivos de ser uma pessoa rancorosa e violenta, já que a mulher que tinha em casa não lhe propiciava prazer e a que lhe pertencia fora do matrimônio não podia ser inteiramente sua e dar-lhe todo sentimento que possuía em si. Anne-Marie e Canisous Rubuga amavam-se de modo inusitado, visto que ambos tinham como objetivo ferir mortalmente a linhagem um do outo. Talvez, se tivessem abandonado o país, poderiam ter encontrado a paz necessária a uma vida normal a dois porque em Ruanda daquele tempo não haveria complacência com o amor e, sendo um interahamwe e a outra guerrilheira dos Inkotanyis, chegaria o instante no qual um sacaria a arma antes do outro, apaixonadamente.

* * * * *

Os tiros que Canisous Rubuga desferiu para o alto foram suficientes para compelir as pessoas a se esgueirarem do local e, imediatamente, paramos o pandemônio. O hutu somente tinha olhos para sua mulher. De minha parte, eu estava sentada na calçada quando Padre Jumpe se aproximou e me tirou para um canto. No entanto, ao perceber o ferimento na cabeça de Anne-Marie, fui ao seu encontro para lhe prestar auxílio e agradecer-lhe a ajuda, dado que, sem ela, teria levado uma surra das três prostitutas boas de briga. Falei para o colega:
— Credo! Não fez nada para me ajudar, padre, e ficou no bem-bom o tempo todo. Que bela companhia o senhor é!
— Minha filha, eu sou um homem de Deus e, ademais, tudo aconteceu rapidamente. Estava a pensar no que poderia fazer por você, quando aquele hutu apareceu atirando à larga. Todos nós corremos para nos proteger, pois o instinto de sobrevivência é comum ao ser humano.
— Vá que seja, e sem mágoas por enquanto. Apanhe minha maleta de primeiros socorros no carro e a traga cá, por favor.
— Para quê, minha jovem? Devemos sair deste lugar sinistro.
— Não posso, padre! Não percebe que sou médica e que há gente ferida aqui? — Lembrei-o do meu juramento de formatura.
Apesar de Canisous Rubuga estar preocupado com o sangramento na nuca de sua companheira, de início, não quis que eu a tocasse.
— Não, Dra. Isabelle. Deixe-a em paz, pois cuido dela.
— Só me faltava essa! Vá que seja, mas fique com a minha valise porque ela contém tudo o que precisa para uma pequena cirurgia. Suture o couro cabeludo dela com atenção para não atingir uma artéria vital.
— Será necessário costurá-la, Dra. Isabelle?
— É claro que sim. Não vê que está perdendo um tempo precioso?
— E essa tal artéria vital da cabeça dela?
— Não só na dela, mas na sua do mesmo modo. Fique sabendo que um homem de Gitarama teve esta artéria rompida e perdeu a visão, a voz e os movimentos dez segundos após o erro do médico. — Eu ria em silêncio da ignorância dele.
Após falar isso, dirigi-me para o veículo de Padre Jumpe, mas, quando entrei no seu interior, o homem me chamou, bracejando em minha direção.
— Dra. Isabelle, não me leve a mal, mas venha realizar seu trabalho, por favor. Depois pode ir embora em paz.
Eu sabia que ele não assumiria tal responsabilidade, visto que era um hutu ignorante, que pouco frequentara escolas e que possuía posição de destaque na caserna, não devido à inteligência, porém em decorrência da sua valentia e crueldade no tratamento dispensado aos tutsis. Então ele desistiu de medicar a Tutsi, por acreditar na história das artérias mortais. O hutu, estando resignado, caminhou em direção a um bar próximo, para beber suas cervejas Primus mais uma vez. Eu examinei Anne-Marie e fiz o possível para lhe amenizar a situação, todavia havia de levá-la ao Centro Hospitalar porque ela tinha tomado uma forte pancada na cabeça. Eu queria me certificar, por meio de uma tomografia, se havia outra sequela além da perceptível. A tutsi estava meio tonta.
— Vamos logo, Padre Jumpe.
— Vamos aonde?
— Para o Centro Hospitalar, pois preciso submeter esta mulher a uns exames de rotina.
— São realmente necessários, Dra. Isabelle?
— Claro que são indispensáveis, padre! Nunca me meti nos seus afazeres pastorais e, por acaso, eu o ensinei a orar?
— Está certo, filha. — Aquiesceu resignado. — Saiamos daqui. Que noite!
Então, falei para a tutsi:
— Eu preciso levá-la ao hospital. Está me ouvindo?
Anne-Marie não conseguia me entender bem, mas isto era secundário, pois eu tinha obrigação de fazer o que estivesse ao meu alcance pela companheira que levara uma pedrada em meu lugar. Tão forte fora o impacto na tutsi que o vi me levando a óbito. No caminho para o hospital, fiquei a imaginar se retornaria para me vingar das prostitutas, porém faria o possível para Dr. Mike não ficar sabendo daquela confusão. Contudo, quando chegamos ao portão do CHK, em alta noite, lá estava o médico inglês esperando-nos com uma expressão de poucos amigos na face e, primeiramente, desferiu sua ira contra o padre-cura.
— Padre Jumpe, como pôde levar Dra. Isabelle para uma área de prostituição? Logo o senhor, um papista tão devoto, sucumbir aos prazeres da carne. Frequentar um covil de perdição daqueles é uma pouca-vergonha.
— Alto lá, Dr. Mike, pois não costumo andar em más companhias. Eu e Dra. Isabelle fomos acolá para darmos um telefonema. O senhor, que é tão amigo do presidente deste país, poderia lhe pedir para melhorar as telecomunicações de Ruanda.
— Vocês foram ligar para quem?
— Esta é uma história minha e de Dra. Isabelle. Além de ranzinza deu para ser curioso também?
Durante o trajeto até o hospital, Padre Jumpe me pedira para que comentasse com ninguém o motivo que nos levou a procurar um telefone público àquela hora da noite e, como o nome do meu pai estava envolvido na história, eu ficaria calada. Tampouco teria sido necessário o clérigo me pedir discrição, já que, quando eu tomava conhecimento de algum negócio político nebuloso no qual o senador se envolvia, mantinha-me distante. Dr. Mike apelou para mim.
— O que vocês foram fazer naquele lugar, Dra. Isabelle?
— Nós fomos tomar umas Primus, Dr. Mike. Pois saiba que eu e Padre Jumpe fomos beber uma cervejinha...
O médico não resistiu à minha cara de pau, nem se conteve ao me ver mentir cinicamente.
— Ah! Ah! Ah! Vocês foram tomar cerveja e dar tapas nas putas de lá? Qual a razão da briga com as garotas? Por acaso, Padre Jumpe se negou a pagar algum serviço prestado por madames? Ah! Ah! Ah!
Padre Jumpe repreendeu o inglês.
— Não seja insolente, Dr. Mike!
Neste momento, uma enfermeira veio me chamar, dizendo que Anne-Marie estava pronta para a pequena intervenção cirúrgica e, então, entrei e me despedi de Padre Jumpe e de Dr. Mike. A confusão com as messalinas somou-se a algumas atitudes impulsivas que eu tive em Kigali, contribuindo para a minha fama de amalucada. Eu era uma mulher muito desinibida, o que causava estranheza nas pessoas de Kigali. Meu jeito solto e informal de me vestir e a praxe desleixada de cuidar dos cabelos criaram-me um visual avesso à sociedade local, tornando-me assunto em muitas rodas de mexerico. Havia quem me amasse e quem me odiasse, pois eu era capaz de matar e morrer pelos meus amigos e de brigar feio contra inimigos. Não me controlava quando pisavam no meu calo e, por estranho que parecesse, muitos ruandeses entendiam bem este arroubo e o aceitavam com complacência. Afinal, eles vivenciavam uma época conflituosa, quando estar vivo ou morto, muitas vezes, era uma questão de sorte. A bravura que eu aparentava ter era vista por eles como uma virtude no submundo hostil de Ruanda. Até Dr. Mike passou a dizer aos próximos que eu me encaixara a prumo naquele país.
— Eu tenho de lhe pedir desculpas, Dra. Isabelle.
— Por quê, Dr. Mike?
— Por tentar fazê-la desistir de trabalhar em Ruanda.
— O senhor não me deu escolhas, ao me impedir de ficar.
— Está bem, está bem, vá lá que seja, mas devo-lhe escusas do mesmo modo.
— Qual a razão, Dr. Mike? Seja mais específico.
— No início, eu tive medo de que você se machucasse em Ruanda, porém...
— Porém...?
— Agora sei que este país não aguenta a senhora, Dra. Isabelle. Onde já se viu uma médica americana chegar a tapas com três putas de Kigali? Ah! Ah! Ah!
— Não seja grosseiro e odioso, Dr. Mike.
— Calma, não se irrite porque pode sobrar um Kung Fu para mim também! Ah! Ah! Ah!
Muito contrariada, saí do hospital e fui para o sacrário da minha casa dormir, pois estava exausta e desejava privacidade. Enquanto eu saía avinagrada, Dr. Mike permanecia no hospital, rindo abertamente na frente de quase todo o quadro de pessoal do Centro Hospitalar, constrangendo-me, deveras.
— Ah! Ah! Ah! Ah!
Cinco dias após este episódio, uma das meretrizes que se envolveram na rixa contra mim e Anne-Marie apareceu morta em um dos outeiros da cidade e, imediatamente, o povo disse que eu mandara fazer o serviço sujo de eliminar a pobre mulher. As outras duas sumiram também e, provavelmente, fugiram temerosas de serem as próximas assassinadas. Se as outras cortesãs foram mortas, não sei, pois seus corpos nunca foram encontrados, mas é lógico acreditar que elas se foram para um novo bordel de algum outro país africano. Mas à frente no tempo eu saberia que Anne-Marie contara aos tutsis que a bisbilhoteira descobrira que ela era simpatizante da Frente Patriótica Ruandesa e ameaçara-lhe contar isso para o hutu Canisous Rubuga. Foi o bastante para a FPR dar um fim à coitada, já que temeram que ela encontrasse alguma vantagem em delatar uma inkotanyi para os hutus. Se Anne-Marie Kenyama provocou a morte da rival por medo de ser delatada como assecla da FPR ou por ciúme do assédio a Canisous Rubuga, da mesma maneira, permanecerá como uma questão sem resposta. Eu não consegui convencer ninguém de minha inocência e de que não estava por trás do sumiço de três jovens damas dos prostíbulos de Kigali, nem mesmo Dr. Mike ou Rose. A única pessoa que assumiu abertamente ter fé em mim foi Tharcisse Mugabe, porém, este não valia como um ponto em meu favor, pois juraria e diria qualquer coisa para me agradar, até contra sua razão. Para minha surpresa, muitos em Ruanda acharam normal a americana ter mandado matar as piranhas tutsis, pois, ainda que me julgassem a responsável, não viam crime em matar mulher de vida desairosa ou prostituta à toa. Eu agira conforme a praxe local, pois assim se fazia naquele país em um ano terrível de discórdias.




4 – O PODER HUTU


De uma feita, Dr. Mike me convidou para um jantar em um distinto clube local ao qual compareceria a nata social porque era uma cerimônia aglutinadora de militantes do Movimento Revolucionário Nacional para o Desenvolvimento (MRND), partido político do Presidente Juvénal Habyarimana. O evento marcava o lançamento da plataforma política do governo para o ano de 1994. Ao chegarmos, fomos solenemente recebidos por umas belíssimas garotas hutus que se acercaram de nós e nos encaminharam a uma imensa mesa central de comensais. Quase todos os assentos estavam ocupados por ministros, jornalistas, militares e embaixadores de nações alinhadas com a autoridade de Ruanda e, por isto, o fausto e o desperdício do dinheiro público caracterizavam a ocasião. Ao nosso lado, estava general Gedeon Bagirubwira, com a costumeira empáfia, e sua família. Os filhos estavam correndo pelo salão, o que enervava o militar, o qual não parava de admoestar a esposa.
— Não lhe disse, mulher, para não trazermos as crianças! Vá lá e as aquiete, pois o presidente está em via de adentrar neste salão.
A esposa do general, uma distinta senhora forte, senhoril e corpulenta, saiu com muita dificuldade da sua cadeira e foi ao encontro dos garotos, tentando acalmá-los. Ela repetiu esta tarefa em duas outras oportunidades, para desespero de general Bagirubwira, que, não vendo outra solução para seus diabretes, resolveu trancafiá-los nas viaturas do exército. Mandou alguém chamar tenente Fred Kaka.
— Tenente, leve os meus filhos com você e cuide deles até este jantar terminar.
— E a segurança do evento, general? Eu estou responsável por ela.
— Pois acrescente os meus filhos ao seu relatório de segurança a ser entregue amanhã cedo em minha mesa. Vamos, tenente, acelere esta missão!
O pobre tenente Fred Kaka passou boa parte da noite fazendo as vezes de babá de dois pestinhas sem igual e, talvez, desejasse estar longe em uma ação de combate contra os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa, em vez de ao lado dos incansáveis filhos de general Gedeon Bagirubwira. Momentos depois, o Presidente Juvénal Habyarimana apareceu com uma comitiva de seguranças à sua volta e todos pararam o que faziam, pondo-se de pé. Então, alguns políticos discursaram em um palco extravagantemente decorado com violetas-africanas, helicônias, antúrios, estrelícias e gengibres de Tharcisse Mugabe. O presidente fez um discurso em tom conciliador com os tutsis, mas, por outro lado, general Gedeon foi contundente em sua catilinária contra a etnia adversária. Expus minha impressão ao Dr. Mike.
— O presidente fez um bom pronunciamento e encheu-me de esperanças de que este conflito termine logo.
— Não fique tão confiante ou esperançosa, Dra. Isabelle, pois ele tão somente defende os interesses comerciais e políticos do país.
— Como assim?
— Como não pode garantir à comunidade internacional uma vitória rápida sobre a Frente Patriótica Ruandesa, sinaliza um acordo de paz e, com isso, diminui o nervosismo do mercado em relação a Ruanda, levando investidores a aplicar dinheiro aqui.
— Entendo, Dr. Mike, mas é uma pena. Você me lembra meu pai falando. Ah! Ah! Ah!
O presidente veio se sentar à nossa mesa, porém, lamentavelmente, acomodou-se do outro lado, longe de nós. Eu esperava uma oportunidade para falar com ele e cobrar-lhe assistência aos twas porque eles careciam de uma legislação que os amparasse e os equiparasse aos outros cidadãos. Ademais, necessitavam ter documentos de identificação e cartões de saúde que lhes proporcionassem acesso à rede pública. Eu o questionaria acerca do analfabetismo, da falta de escolas para os pigmeus e da proibição de exercerem a caça e a pesca, seus meios tradicionais de subsistência. Infelizmente, Dr. Mike não permitiu que eu me aproximasse do presidente e explicitasse um assunto inoportuno para a ocasião, questionando a pertinácia das minhas observações.
— Não se pode falar essas coisas diretamente para ele, Dra. Isabelle.
— Posso saber por que não?
— Você deve esgotar os meios intermédios legais, antes de ter acesso ao presidente, e não pode ser assim, ainda mais em público.
— Que meios são esses?
— O funcionalismo, a administração pública e os canais constituídos ao longo da burocracia.
— Ah! Ah! Ah! Ótima piada, Dr. Mike. Estes burocratas larápios não conseguem comprar remédios para nós tratarmos seus parentes, quanto mais fazer algo de bom pelos pigmeus.
— Ora essa, Dra. Isabelle, não fale mal desta gente aqui porque as pessoas podem notar! Nós fomos gentilmente convidados para este evento e agir desta forma não é cortês da sua parte. Filie-se a uma ONG e deixe nosso presidente jantar sossegado porque ele tem uma guerra com que se preocupar.
— Você é um nazista safado e odioso, Dr. Mike! Como pode não se compadecer do sofrimento dos twas deste país? Estenda a mão à caridade e apiede-se dos pobres ao menos uma vez.
— Não seja ingrata, visto que faço um trabalho valioso para este povo. Lamentavelmente, Ruanda é um estado intolerante dividido em castas como a Índia e nós temos de realizar os nossos esforços, sem fazer escolhas ou agir por interesses étnicos. Se eu perder a credibilidade da autoridade constituída, não conseguirei ajudar os pobres daqui. Se é para consertar este lugar na marra, traga o Batman para cá em vez de mim!
— Eu entendo sua posição, Dr. Mike, e até a acho coerente. Entretanto, não sou como você, pois odeio injustiças e não sei trabalhar pelas beiradas com tanta diplomacia à sua maneira. Se não quer que me dirija ao presidente, não o farei, pois prometi ser sua companhia nesta noite e fique tranquilo, que eu não mais falarei mal do seu chefe, também.
— Obrigado, Dra. Isabelle.
O médico suava frio, temendo que eu fizesse algum escândalo e aprontasse um barraco em tal ambiente glamoroso, fino e formal. Todos comemos bastante, pois havia no salão uma fartura que eu não encontrava nas ruas da cidade. Senti-me desconfortável ao constatar abastança e muita comida desperdiçada, enquanto os meus pacientes mal tinham uma molécula de proteína para pôr na língua. Um grupo de música africana começou a animar o ambiente, a comezaina iniciou-se, todos entraram a beber despreocupadamente e a alegria tomou conta do lugar. Por seu lado, Dr. Mike e general Gedeon Bagirubwira estavam em um séquito de bajuladores e oportunistas políticos em volta do presidente, provavelmente falando de política. O grupo soltava sonoras gargalhadas e consumia garrafas e mais garrafas de puro uísque escocês. Por umas palavrinhas com a elite ruandesa, meu namorado me deixou à margem. De minha parte, eu, tampouco, participaria de uma roda de homens barulhentos e mal-educados e, para piorar a minha sensação de isolamento, as senhoras da sociedade kigalense mantinham distância de mim e de minhas bizarrias involuntárias, pois minha fama de brigona, encrenqueira e maconheira as afugentava. Então, um homem loiro, que me olhava desde a minha chegada à mesa, vendo-me sozinha, calmamente, aproximou-se, falando um limpo francês caro e nostálgico para mim.
— Bonsoir, Mademoiselle Isabelle, meu nome é Pierre Raynaud. Permite-me uma dança?

* * * * *

Isabelle olhou para o francês e viu seus brilhantes olhos azuis fitarem-na atentamente. A música romântica entrando em seus ouvidos cansados de escutar as grosserias dos bêbados do salão, o jeito terno do gaulês e o descaso de Dr. Mike, que a deixou sozinha, amoleceram-na a ponto de não poder recusar a corte do homem à sua frente. Assim sendo, iniciaram uma dança suave e aconchegante, deslizando pelo salão à moda francesa, já que Monsieur Raynaud era um valsista habilidoso. Parecia que tinham patins sob os pés e bailavam em uma apresentação do antigo grupo de espetáculo no gelo Holiday on Ice. Por seu lado, Dr. Mike os olhava de longe e ela percebia que o ciúme o consumia. Então, general Bagirubwira, sob o efeito de boas doses de uísque, começou a torturar o coitado inglês.
— Parece que a tua ginecologista vai para a França, Dr. Mike. Bem que me disseram que os ingleses são chifrudos. Ah! Ah! Ah! Ah!
Dr. Mike absorvia a gozação da melhor maneira que podia, enquanto o general não lhe dava descanso um minuto sequer. Apontava para a americana e para o francês na pista de dança e passava a mão nos cabelos grisalhos do médico. Isabelle, de longe, fingia não perceber o que se passava na mesa dos homens, acenando para Dr. Mike e amigos de copo e, quando fazia isso, a algazarra aumentava. Outros oficiais, além do general, uniram-se para espezinhar o inglês, ao passo que ela incentivava o justo castigo, por ele tê-la largado sozinha para tratar de política com os hutus.
— Nossa! Ele está fungando o pescoço dela.
— Agora vai!
— Aquele francês é um depravado e dizem que já passou das dez putinhas só nesta semana.
General Gedeon Bagirubwira se deliciava com a situação constrangedora do seu amigo inglês e, rindo muito, tirou uma pistola do coldre para oferecê-la a Dr. Mike em tom de chacota.
— Tome, inglês, pegue esta arma e acerte três tiros na cabeça do francês corneador ali com sua médica. Ah! Ah! Ah!
Todos no grupo:
— Ah! Ah! Ah! Ah!

* * * * *

Irritado, Dr. Mike saiu de perto dos hutus indiscretos e foi se sentar no lugar à mesa onde antes estivera ao meu lado. Havia passado quase uma hora desde que eu iniciara a dança e estava abraçada ao francês. Nós, além de dançarmos, conversamos neste meio tempo. Falamos da França, dos Estados Unidos e das nossas recordações. Ele conhecia o meu país, pois estudara lá e isto ajudou o nosso diálogo.
— Estava curioso por conhecê-la pessoalmente, Isabelle.
Educadamente, ressaltei a pressa do francês.
— Dra. Isabelle, por enquanto, senhor.
— Como queira, Dra. Isabelle.
— Por que queria me ver?
— A senhorita é muito conhecida em Kigali. Talvez, em todo o Ruanda e, apesar do pouco tempo que está neste país, adquiriu notoriedade.
— O que chama de notoriedade, tomo por fofocas ao meu respeito e bem próprias de algumas bocas vadias deste lugar.
— Ah! Ah! Ah! Deveras. Se quer enxergar as coisas por este ângulo.
— Fofoqueiro é igual aqui ou em Nova Iorque.
— Deixemos isso para lá, pois vejo que é um assunto que não lhe agrada.
— Grata pela compreensão.
— Diga-me como conseguiu surrar dois milicianos?
— Não maltratei ninguém, pois apenas me defendi, mas o povo aumenta a história. Os hutus temeram enfrentar uma mulher estrangeira em praça pública e apenas me empurravam de lado. Quem lhe disse isto?
— Não se afobe, pois não quero saber como bateu nos interahamwes.
— Ah! Ah! Ah! Não ousaria porque o senhor me parece um bom homem.
— Nós demos uns tapas neles, Dra. Isabelle, dado que passaram do limite, ao baterem em uma dama
— Quem tomou minhas dores?
— Nós do exército francês Sou o coronel Pierre Raynaud.
— A França está metida na rusga deste país?
— Participamos de algum modo deste conflito entre tutsis e hutus.
— De qual lado?
— Oficialmente, do lado de ninguém, todavia, na prática, defendemos os interesses do regime hutu, que é nosso aliado em questões de geopolítica global.
— Somente por isso mesmo?
— Pergunta-me acerca de um tema confidencial. Acredito que os ingleses estão com os tutsis, o que é um bom motivo para os franceses estarem ao lado dos hutus.
— Como os ingleses estão nesta história, se não os vejo por aqui.
— Estão em surdina em Uganda, de onde partem as investidas dos tutsis.
— Está certo disto?
— Observe que tutsis da Frente Patriótica Ruandesa falam um inglês puro e não querem ouvir falar do idioma francês. Nós treinamos o exército ruandês e a Interahamwe.
— Cruz-credo! É o senhor quem cria aqueles luciferes?
— Não formamos o pensamento deles, pois nosso convênio é apenas para o repasse de técnicas de combate. A aplicação prática das habilidades que desenvolvem é uma tarefa da autonomia deste país.
— Isto não tira a culpa de vocês.
— Se eu lhe vendo uma boa arma, não posso ser recriminado, caso atire no que não deve. Quase todos os países ricos ajudam os pobres e, se não nos prontificarmos, outros virão.
— Em auxílio da Interahamwe?
— Sim, Dra. Isabelle, pois a soldadesca hutu é uma polícia política e há inúmeras no mundo. Ela é tão notada, apenas por estarmos em uma ocasião que requer medidas amargas.
— Matando-se tutsis indiscriminadamente?
— Os milicianos não agem a esmo, doutora, já que agridem aqueles contra os quais há fortes evidências de colaboração com os inimigos. Infelizmente, contamos um sem-número de tutsis neste país que sonha com a tomada do poder pela Frente Patriótica Ruandesa e faz algo de concreto nesse sentido.
— O senhor tem uma boa lábia e, se persistir nesse argumento, vai me convencer a entrar para a Interahamwe, pegar um facão e sair cortando a garganta de muita gente por aqui, a começar por aquele ali. — Apontei solene e lentamente para o presidente ao lado de general Juvénal Habyarimana.
— Ah! Ah! Ah! É espirituosa.

* * * * *

Após algum tempo, Isabelle retornou para o seu local à mesa e encontrou Dr. Mike em um pileque só, corroendo-se por dentro com ciúmes dela com o coronel. O francês o cumprimentou, visto que se conheciam. O médico pagava o preço por ser mulherengo, pois, como Pierre Raynaud costumava vê-lo de caso com muitas mulheres, viu Isabelle apenas como um flerte a mais do médico. O inglês percebeu isso e reclamou.

* * * * *

— Por que não desenterrou uma defunta de hutu para lhe fazer companhia, miliciano francês? Não percebe que Dra. Isabelle está acompanhada?
— Eu, um miliciano? Não seja tão espirituoso, meu caro.
— Procure uma cabana de tutsi para pôr fogo, já que a noite está terminando.
— Senhor, respeito seu estado, todavia posso tomar isso como um insulto.
— Se for um insulto, qual é o problema?
— Não queira sentir a ira de um oficial francês.
— Vá à merda você e seus facões franceses.
A discórdia ficou tensa entre os dois e eu fiquei pasma, por sentir que dois homens estavam prestes a se esbofetearem por minha causa. Tentei acalmar o ânimo de Dr. Mike, no entanto a embriaguez encharcara seu raciocínio.
— Senhores, por que não agem como duas pessoas civilizadas?
O médico tornou a provocar o coronel Pierre Raynaud.
— Não se importe, Dra. Isabelle, pois nós, ingleses, estamos habituados a bater nos franceses.
Eu repreendi Dr. Mike.
— Dr. Mike, o senhor está sendo grosseiro e inconveniente!
O coronel Pierre Raynaud acrescentou:
— Não se importe com esse alcoólatra, doutora! Somente não lhe dou uns tapas aqui mesmo, por respeito à presença do presidente e à sua ao nosso lado. Amanhã, quando estiver melhor, eu converso com ele.
Ao escutar a ameaça, Dr. Mike partiu para cima do oficial francês e lhe desferiu um soco no rosto que o fez tombar para trás, porém, como Pierre Raynaud era jovem e mais forte que Dr. Mike, recobrou facilmente o equilíbrio e contra-atacou com força superior. A seguir, rolaram pelo salão, trocando socos e pontapés. Do outro lado, general Gedeon Bagirubwira com seu grupo de hutus não paravam de rir, dado que estavam radiantes, por terem conseguido incitar uma briga entre os dois gringos.
— Ah! Ah! Ah! Ah!
Eu estava desesperada pedindo a alguém que separasse os dois homens inconsequentes e não imaginara que a situação entre ambos chegasse àquele ponto, porém, ninguém estava disposto a parar a confusão e até o presidente olhava atento o desenrolar da briga. De repente, para minha surpresa, chegados não sei de onde, Rose e Elizaphan se somaram a mim para acudir Dr. Mike, que levava uma surra das boas e nós três juntos conseguimos separar os brigões. Elizaphan se atracou com coronel Pierre Raynaud e conseguiu contê-lo, enquanto eu e Rose seguramos Dr. Mike. Então, os dois arruaceiros se sentaram à mesa e iniciaram um diálogo civilizado. O francês tomava generosas doses de uísque com Dr. Mike e, por meio do álcool, anestesiando seus cérebros pecaminosos, selaram a paz entre ambos, rindo da situação ridícula em que se envolveram por causa de uma mulher.
— Ah! Ah! Ah! Ah!
Eu queria abandonar aquele lugar de homens embriagados, todavia Rose me pediu, por tudo, que ficasse em sua companhia até o final da festa. Na verdade, se há algo que as americanas não deixam na mão é uma amiga, principalmente, no que envolve à vida noturna.
— Por favor, Dra. Isabelle, não se vá e não me deixe aqui em meio a tanta gente mal-encarada.
— O que raio veio fazer em um evento do partido político do governo hutu, Rose? Está querendo se matar?
— Não, Dra. Isabelle, eu vim fazer companhia a Elizaphan, mas, infelizmente, o irresponsável não me preveniu de que a festa seria nestas condições.
— Ele é de um partido extremista? Vou falar com ele, agora mesmo, pois, se maltrata tutsi, que não se enamore de uma delas.
— Calma, Dra. Isabelle, já houve muita confusão por hoje e deixe-o quieto porque Elizaphan não é um maria vai com as outras. Na realidade, é um bom e pacífico hutu que não se envolve em política ou matanças.
— Afinal de contas, por que ele está aqui?
— Por ser um hutu de confiança na FBE, foi escolhido por nosso patrão para acompanhá-lo neste evento.
— Seu patrão não é tutsi?
— Em carne e osso.
— E aí?
— Não me pergunte porque tampouco entendo algo dessa história. Não me sinto bem, aqui, e não me deixe sozinha, por favor!
— Não se exaspere, Rose, pois não vou abandoná-la. É realmente estranho que o Sr. Emmanuel Habimana, sendo um tutsi tão fervoroso, esteja neste lugar.
Dr. Mike explicou-nos a situação.
— O Sr. Habimana, a despeito de ser tutsi, é um homem rico, Dra. Isabelle.
— O que a sua riqueza tem a ver com simpatia pelos hutus?
— Ele não dispensa apreço a essa gente e, na verdade, a odeia, assim como fazem todos os tutsis.
— Ele está aqui obrigado, Dr. Mike?
— Sim e não. Não é uma resposta fácil, mas digamos que está a fazer política ou, talvez, falemos que trate dos seus interesses comerciais.
Olhei em volta e vi o cafeicultor tutsi conversando reservadamente com o Presidente Juvénal Habyarimana do outro lado do salão em uma mesa simples. Tomavam a cerveja francesa Mutzig, mais cara e de melhor qualidade que a Primus, que abarrotava as outras mesas. O médico alcoolizado, após ver as saborosas mutzigs na mesa do presidente, foi à procura de uma para si.
— Se há Mutzig para eles, por que não para mim também? Os senhores querem uma cerveja?
Eu lhe respondi que não queríamos, pois acreditava que Dr. Mike encontraria confusão aonde quer que fosse buscar as mutzigs, porém, Rose me tranquilizou.
— Não se preocupe, Dra. Isabelle, e deixe lá o doutor porque ele não está em perigo entre essa gente. Todos gostam dele em Kigali e os hutus, especialmente, são seus companheiros de boêmia, estando habituados ao seu jeito.
— Você tem razão, Rose, e, além do mais, não sou babá de um homenzarrão desses.
Dr. Mike saiu cambaleando pelo salão e, três minutos depois, retornou equilibrando entre os braços e o tronco cinco garrafas de legítimas mutzigs. Eu fiquei com uma e, finalmente, consumi minha primeira dose de álcool na festa. O coronel francês continuou o assunto sobre o fazendeiro tutsi que não desgrudava do Presidente Juvénal Habyarimana.
— O estancieiro Emmanuel Habimana é o maior contribuinte do partido do presidente, Dra. Isabelle.
— Penso que se refere a extorsão. Eles o exploram?
— Se vê a política por este ângulo, não a contestarei, mas, por meu lado, prefiro pensar que o Sr. Emmanuel adquire algumas garantias pessoais e recebe alguns privilégios em troca da ajuda financeira ao partido do governo.
— Você quer dizer que ele dá dinheiro aos hutus que matam sua gente? Eles não têm medo que o Sr. Habimana tome uma atitude de revanche e cause-lhes algum dano em represália? Afinal é rico, poderoso e, por certo, deve ter alguma carta na manga para seus momentos de aperto.
— Estes são tempos difíceis, Dra. Isabelle e, em um regime político conflituoso, esforços são necessários e produzem situações esdrúxulas como esta de vermos o dinheiro dos tutsis comprando facões que servem para cortar seus próprios pescoços. Não sei aonde isso vai parar.
Curiosa com a explicação do coronel Pierre Raynaud, Rose quis saber como o tutsi conseguia preservar sua integridade física e riqueza, lidando diretamente com hutus tão poderosos.
— Por que simplesmente não tomam de uma vez tudo o que ele possui?
— Por que ninguém sabe o quanto ele tem. O Sr. Emmanuel Habimana é um empreendedor astuto e a maior parte da sua fortuna está no exterior.
Rose pensou em si, nos irmãos e nos seus pais, que moravam na Fazenda Boa Esperança.
— Não há perigo de lhe tomarem a propriedade rural?
— Estes hutus são políticos e não empresários, senhorita. Se usurparem as empresas dos tutsis, terão de trabalhar e deixarão de ser parasitas da burocracia deste país. Na realidade, querem a Fazenda BE funcionando muitíssimo bem e dando lucro, pois só assim têm direito ao seu pedaço da riqueza do fazendeiro.
Dr. Mike complementou o assunto.
— Não tema, pois você não será despejada, Rose, já que o poder executivo não cometerá a loucura de estatizar empresas ou expropriar bens dos cidadãos. Se fizer isso, dará um tiro no próprio pé, pois financiamentos em curso para Ruanda serão imediatamente cortados pela comunidade internacional e a concessão de outros será bloqueada. Então, a corrupção e a farra do desvio de verbas públicas sofrerão um revés neste país.
Em um canto da sala, o Sr. Habimana assinou um cheque e o entregou a general Gedeon que, por sua vez, se dirigiu ao encontro dos uísques escoceses à mesa do Presidente Juvénal Habyarimana.
O produtor rural, muito contrariado, veio ao encontro de Rose e Elizaphan, que estavam ao nosso lado.
— Boa noite, senhores, desculpem-me não lhes ter dado atenção. Tratava de negócios.
— Nós compreendemos, senhor.  Fez bons negócios hoje? — Perguntei-lhe.

* * * * *

Isabelle falou com a intenção de fazê-lo ver que o viu financiar os assassinos da sua própria gente, mas o Sr. Emmanuel não compreendia a situação da mesma forma. Para ele, a questão era meramente comercial, visto que sua propriedade que estava em jogo no salão. A FBE herdada dos seus pais era mais importante que todos os tutsis de Ruanda juntos e gerir seu negócio era uma religião para a qual dispensava uma devoção xiita. Ele não a respondeu e se limitou a convocar seus dois acompanhantes para saírem do local imediatamente. Percebia-se que não estava se sentindo à vontade no ambiente agitado, tampouco considerava aquela uma festa sua. Foram-se os três de volta para a cidade de Gitarama.

* * * * *

Eu, Dr. Mike e Pierre Raynaud fomos atrás deles no veículo da Cruz Vermelha. À frente, a viatura da Fazenda Boa Esperança seguia com os nossos amigos de Gitarama dentro. Aquela foi a primeira oportunidade que tive de avistar uma barreira formada pelos hutus radicais. Passávamos por um bairro onde muitos tutsis habitavam e os milicianos da Interahamwe abarreiravam todos que se aproximavam deles, com o intuito de checar os cartões raciais. Na ocasião, no limiar do ano, eles ainda não acossavam e matavam a bel-prazer os tutsis que tentassem passar pela cancela, porém constrangimentos e algumas mortes sempre ocorriam. Aquelas operações faziam parte do treinamento da tropa miliciana para atuação posterior quando o crudelíssimo genocídio viesse para valer. Assim, o veículo do Sr. Emmanuel Habimana foi parado e nós ficamos um pouco atrás, pois tinham-nos dado ordens para aguardar a nossa vez de averiguação. Ficamos quietos, observando o desenrolar da cena adiante. Percebi que os hutus eram rapazes muito novos, sendo alguns recentemente saídos da adolescência. Bebiam cerveja quente de sorgo e fumavam muita marijuana. Tudo estava calmo até que um rapaz afoito, ao olhar dentro do carro e perceber a beleza de Rose, abriu a porta do veículo, puxou-a para fora com violência, agarrou-a pela cintura e tentou beijá-la, enquanto a comprimia contra o veículo. Elizaphan saiu do veículo e atingiu o primeiro interahamwe que encontrou à frente, mas outro, por trás dele, deu-lhe um golpe de facão que passou raspando suas costas, marcando-a com um leve arranhão. O Sr. Habimana, o coronel francês e Dr. Mike, instintivamente, saíram dos veículos para acudir Rose e Elizaphan, quando um sonoro estampido de arma pesada abafou todas as vozes de desespero. Um disparo de rifle AK-47 (Automatov Kalashnikov) russo espatifou os vidros do veículo da Fazenda Boa Esperança e arrefeceu o ímpeto dos milicianos, que compreenderam de imediato de onde tinha partido o tiro e o que significava para eles. Puseram-se todos firmes, todavia inertes, enquanto o hutu Canisous Rubuga, líder da Interahamwe, gritava para seus comandados:
— O que está havendo aí?
Todos ficaram paralisados à mercê da arma do potente hutu e, então, ele olhou em nossa direção e depois para o Sr. Emmanuel Habimana, e, por fim, para os seus homens, com os quais falou com rispidez. Apontou para o cafeicultor e disse para seus capangas:
— Esse tutsi aí possui passe livre.
Ao ouvir Canisous Rubuga dizer aos interahamwes que o Sr. Habimana, um tutsi, tinha passagem garantida pela cancela, compreendi, de forma cristalina, os contatos do estancieiro com os militares e políticos hutus momentos antes. O fazendeiro ligou o carro e partiu de imediato e, ao sair, Rose olhou-me profundamente e vi na sua expressão, ainda fresco, o terror que ela sentira havia instantes. Fiquei assustada, ao perceber a aflição da minha melhor amiga e fiz por sobre o peito o sinal da cruz, benzendo-me a rogar a Deus que não permitisse que a bela jovem se visse, algum dia, nas mãos de monstros daquela estirpe. O coronel Pierre Raynaud se abeirou dos hutus e começou a conversar detidamente com eles, observando a área em volta, para dar orientações de como proceder em ocasiões como aquela, quando ficavam diante de gente prestigiada e distinta, ainda que tutsi. A princípio, reprochou o líder interahamwe.
— O que se passa aqui, Canisous Rubuga? Isto mais parece uma festa que uma operação de segurança. E por que toda essa bebida? Não lhe disse que não misturasse diversão com trabalho.
Era só o que me faltava naquela noite: ouvir uma lição do modo de operação da Interahamwe. Eu não gostava nada daquela gente violenta e, por isto, propus ao médico irmos embora.
— Vamos cair fora daqui, Dr. Mike! Quer aprender a ser interahamwe? Quer saber como se esquarteja tutsi?
— Estou vendo tudo isso e é uma pena que uma nação tão distinta como a França chancele tais atividades.
— Não acredito que os franceses saibam o que os seus soldados fazem neste lugar. Alguém tem de denunciar isso!
— Conte para seu pai, Dra. Isabelle, pois é um político influente e, por certo, o próximo presidente americano. Ele talvez saiba o caminho de dar um basta nesses treinamentos de formação desta milícia hutu com beneplácito francês.
— É o que farei amanhã ao acordar. O meu pai é cabeça-dura, mas justo. Talvez tenha de falar por muito tempo com ele ou com minha mãe se ele não me atender. Posso chegar atrasada ao centro hospitalar amanhã, Dr. Mike?
— Não me importa quanto tempo necessite ficar grudada ao telefone, Dra. Isabelle. Se alguém morrer em decorrência de sua ausência, não se preocupe, pois milhares de outras vidas salvará, por meio do senador.
Durante uma semana, grudei-me ao telefone público a ligar para o meu pai, explicando-lhes que o exército francês formava um comando paramilitar hutu assassino de civis. Ele argumentou, no entanto:
— Isabelle, minha filha, você não nos disse que iria a Ruanda para clinicar e desenvolver seus conhecimentos?
— Estou fazendo isso, pai.
— Então, por que você está se envolvendo na política interna desse país?
— Apenas procuro evitar algumas mortes.
— Como pode ter certeza de que ocorrerão tantas fatalidades entre civis?
— Já há gente morrendo e todos tutsis.
— Não é verdade, Isabelle, pois tenho aqui um relatório da nossa embaixada aí em Ruanda e há mais hutus que tutsis assassinados.
— Só vejo tutsis serem enterrados.
— É porque você ainda não foi ao norte desse país, filhinha. Ali os tutsis da Frente Patriótica Ruandesa dão uma cossa feia nos hutus. Você não acha normal que, em uma época de enfrentamento militar, o governo elimine espiões em Kigali? Não posso pedir ao Presidente Juvénal Habyarimana que se omita diante de um exército rebelde que invade o país. Eu estaria pedindo-lhe que cometesse um crime de estado e, por mais que eu a ame, não faria isso. Atenha-se ao trabalho médico e deixe os ruandeses se entenderem entre si, pois essa gente briga há séculos. A História está cobrando uma posição definitiva dos hutus e dos tutsis neste ano de 1994 e veremos no que isso vai dar no final. Eu igualmente ouvi falar desse boato de genocídio contra os tutsis, mas são apenas rumores que partem da ala minoritária radical do poder hutu. Não se preocupe, pois esses xiitas estão sob controle. Vou me empenhar para que, neste semestre, o Presidente Juvénal Habyarimana e o comandante Paul Kagame se sentem à mesa e cheguem a um acordo. Está bem assim para você?
— Está ótimo, pai, e não imagina o quanto fico agradecida.
— Quer que eu tente mandar o coronel Pierre Raynaud de volta para a França, Isabelle?
— O senhor levará os soldados com ele?
— Não me exija isso, filha, porque não posso pedir que retirem as tropas francesas daí. Se elas saírem, os belgas, os alemães ou os ingleses as substituirão. A França possui interesses geopolíticos legítimos na África Central. Não se meta em política. Eu e sua mãe estamos orgulhosos do seu trabalho como médica. É bem verdade que o embaixador apesar de dizer que você é querida em Ruanda, também nos contou sobre uma boataria a seu respeito. Contudo, conhecemos nossa menina mais que ninguém neste mundo e você saiu com o formato do pai. Ah! Ah! Ah!
— Sendo assim, não tire monsieur Raynaud de Ruanda, pois é melhor lidar com quem eu conheça.
— Está certo, Isabelle, façamos da forma que ache melhor. Só mais uma coisa, filha: não me jogue contra sua mãe, pois ela não está bem de saúde. Não a preocupe com esses assuntos de conflitos étnicos e mortes, visto que ela começa a se preocupar com sua segurança em Ruanda. Se você deseja completar seu estágio na Cruz Vermelha, deixe-a fora da política e converse diretamente comigo. Fale com ela tão somente sobre os pigmeus, seus amigos, já que ela adora ter notícia deles. Como é mesmo o nome do seu namorado? Ah! Tharcisse Mugabe. Apelido esquisito, esse. Ah! Ah! Ah!
— Credo, Pai! Ele é só meu amigo! Beijos na mãe. Até logo.

* * * * *

Enquanto estavam na barreira dos hutus, Dr. Mike e o coronel Pierre Raynaud conversavam.
— Leve Dra. Isabelle deste lugar, Dr. Mike. Eu fico com estes hutus.
— Na realidade, eles são suas criações.
— Não exagere, pois apenas tento corrigir alguns rumos por aqui.
— Pode iniciar o trabalho porque eu e Dra. Isabelle estamos curiosos para saber o que você ensina a esses homens.
— Dr. Mike, tire-a daqui, dado que estamos dentro de um massacre. Há tutsis assassinados por estes homens em nossa volta. Não percebe?
O médico olhou o entorno e apenas divisou o escuro da noite profunda. Ouviu os sons agudos dos animais em predação e os chiados de suas presas abatidas sob o breu. Então, imaginou que Dra. Isabelle poderia fazer um escândalo pronto para a capa do New York Times, se percebesse os corpos mutilados dos pobres tutsis nas imediações.

* * * * *

Perguntei de dentro do veículo, pressentindo que algo não corria bem:
— Qual é o problema?
— Não há nada errado, Dra. Isabelle. Consegui nossa liberação e vamos seguir adiante.
— Como não haveríamos de ser liberados? Essa gente é clandestina e não tem autoridade sobre a Cruz Vermelha. Temos salvo-conduto em Ruanda, pois trabalhamos em acordo com os chefes desses homens. Quer que eu vá resolver essa questão pelo senhor? Está tudo muito lento aí.
— Não precisamos da sua ajuda, tampouco da sua valentia. Guarde-as por ora e as empregue com os americanos quando retornar para o seu país.
Ao ouvirem minha voz vinda da Land Rover e o meu claro sotaque americano, os rapazes da Interahamwe se inquietaram. Dois deles, de facão em punho, andaram em minha direção, como se fossem cães farejando uma cadela no cio. Amedrontei-me, ao ver aquelas pessoas horríveis com andrajos coloridos e extravagantes se achegando e senti na alma o temor que acometera Rose havia instantes. Quando estavam perto da picape, o coronel Pierre Raynaud ordenou que retornassem.
— Vocês dois, retornem para cá!
Eles atenderam o francês sem esboçar reação ou contrariedade. O coronel Pierre Raynaud ficou com os hutus na contenção e eu e Dr. Mike iniciamos a desejada ultrapassagem da cancela improvisada no caminho de barro. De repente, pressenti um movimento brusco na brenha escura à borda da rua em meio à ramaria e vi um ser pequeno saindo da escuridão. Era o twa Mukono e, de imediato, imaginei que estava ferido, contudo de relance, percebi que ele dispunha de um facão quase do seu tamanho e que provavelmente caçava na mata na hora e local inadequados. Os olhos do twa brilharam feito fogo, faiscando em minha direção. Percebi que aquele olhar não poderia pertencer a um ser humano, pois eram triangulares, brilhosos e espichados como os de um gato na escuridão. O pigmeu me mirou desafiadoramente quando passamos por ele, gruindo e rindo cinicamente para mim, despejando escárnio através de um olhar felino. Eu gritei e pedi a Dr. Mike que parasse o veículo.
— Pare este carro!
Ele não me atendeu, pois estava louco para sair do lugar. Eu insisti.
— Por favor, dê ré neste veículo!
— Nem pensar! Não é uma boa ideia voltar lá.
— Há um twa entre aqueles hutus, dentro do matagal, fora desta estrada e ele será logo descoberto.
— Tem certeza disso?
— Claro que sim, já que acabei de ver Mukono. Bem que dizem que ele é sobrenatural.
— Como pode ter certeza? Está tudo tão escuro.
— Eu o vi portando olhos esticados e avermelhados.
— Gente de olhos vermelhos, doutora? Deve ter visto algum animal conferindo a agitação incomum nesta noite. Este é o território de caça de algum espécime macho dominante.
— Era ele, Dr. Mike, e eu percebi. Não parecia com gente, contudo era Mukono. Dá-me calafrios só de pensar.
Ele foi irônico comigo.
— Se Mukono, neste momento, está com o Tinhoso no corpo, não acha que já tem ajuda suficiente contra aqueles hutus?
— Não brinque com essas coisas, Dr. Mike, e não zombe das forças da natureza para as quais nós não temos explicações lógicas.
Ele deu ré, parou a uns quarenta metros da barreira dos interahamwes, deixou-me dentro do carro e voltou para junto dos hutus.
— Não saia de dentro desta picape por nada, Dra. Isabelle. Se alguém ou alguma alma penada que erre pela terra se aproximar de você, grite que eu a socorro. Ah! Ah! Ah! Ah!

* * * * *

Ao se achegar ao grupo, Dr. Mike viu Mukono sentado em um canto da borda da rua, encostado a um eucalipto. Uma aparência maligna dominava o pigmeu e transbordava pelo seu olhar. O médico se dirigiu ao chefe da Interahamwe.
— O que um twa faz aqui, Canisous Rubuga?
— Isso é da sua conta?
— Digamos que sim! Por que o abarreirou e que mal ele lhe fez? Há uma frente patriótica dos twas atacando os hutus também?
Canisous Rubuga riu.
— Ah! Ah! Ah! FPT. Esta é ótima, Dr. Mike. Já nos bastam os Inkotanyis e não tenho interesse em matar esse merdinha.
— Pois então o solte!
— Ele não está preso e trabalha por conta própria. Ajuda-nos a esfaquear os tutsis que passam por aqui. Esse pestinha é bom com um facão na mão, pois faz um trabalho ótimo. Quase que as baratas não sangram, ao morrerem por meio dos golpes dele. Esse twa já deve ter matado muita gente em Ruanda e é dos bons, Dr. Mike. Fique conosco e poderá constatar daqui a pouco.
— Minha nossa, não seja louco, Canisous Rubuga! Agora está a recrutar pigmeus para a Interahamwe? Alguém tem de pôr um fim nisto ou vocês tornarão este país um mar de sangue tutsi.
— Pode crer que estou apenas no começo.
— Não ouça programação antitútsi da rádio Ruanda ou da Mil Colinas, pois pregam violência contra gente indefesa. Estes coitados não são os malfeitores que dizem a você que são.
— Pegue o twa de Dra. Isabelle e o leve com você! O que a doidona faz com esses pigmeus, Dr. Mike? Por acaso, ela os cria como cachorrinhos de lambe-lambe? Ah! Ah! Ah! Ah!
— O que fez para convencê-lo a ajudar você neste trabalho sujo?
— Nada...
— Como nada? Não seja mentiroso, Canisous Rubuga.
Monsieur Raynaud, que escutava a conversa, falou para o médico:
— Canisous Rubuga prometeu a Mukono livre acesso às reservas florestais.
Dr. Mike percebeu o engodo.
— Este twa é um caçador e coletor das florestas da África Central.
— Bingo! Assim temos outro miliciano à disposição desse hutu.
— Canisous Rubuga não tem autoridade para dar livre conduto aos parques florestais a Mukono. — O médico falou.
— Eu sei disto, o senhor e Canisous Rubuga igualmente sabem, mas não esse pobre aldeão. O coitado já matou no mínimo umas cinco pessoas hoje à noite e, em vão, pois é logrado. Leve-o com o senhor, Dr. Mike, pois eu me entendo só com este desordeiro sem escrúpulos.
O inglês pegou Mukono pelo braço e o levou para a Land Rover. Ao chegar, colocou-o na traseira do veículo, para que a médica não o visse o seu estado. Ligou o veículo e seguiu adiante a toda velocidade.

* * * * *

Ao chegarmos em frente à minha casa, desci e fui olhar Mukono, no entanto, não o encontrei. Chamei o médico.
— Dr. Mike, Mukono não está mais aqui. Será que caiu?
— Claro que não, Dra. Isabelle. Ele é ágil como um cabrito montanhês e deve ter pulado.
— Acha mesmo que ele saltou de um veículo em alta velocidade?
O inglês estava cansado e queria pôr termo à noite agitada.
— Não sei se pulou, mas você mesma disse que ele vira bicho. Talvez já seja um pássaro a voar de volta para os hutus. — Dr. Mike tinha voz cansada mas decidida.
— Ele voltaria para aquela barreira depois que o salvamos dela? Não faz sentido.
— Não sei aonde Mukono foi, mas deve estar em algum lugar nas campinas, seu verdadeiro lar.
— Sei...
— Não me peça para retornar àquela cancela novamente, pois juro-lhe que a deixo ir sozinha desta vez porque amizades têm limites.
— Não faria isso, Dr. Mike. Salvamos Mukono uma vez nesta noite e é o bastante. Se for burro ou teimoso o suficiente para forçar passagem por aquele obstáculo, é problema dele. Como você falou, o twa está a descansar em algum toco de árvore em alguma destas ditas mil colinas deste país, aguardando os interahamwes se mandarem.

* * * * *

Isabelle nunca soube se Mukono retornou à barreira para assassinar mais tutsis ou aproveitou a oportunidade que lhe deram para se distanciar do diabólico Canisous Rubuga. O certo é que, durante o genocídio ruandês, twas foram coagidos pelos hutus a participar de matanças de tutsis e, ou acudiam ao chamamento, ou morriam. Muitos deles, além disso, foram mortos pelos hutus sob suspeita de favorecerem apavorados tutsis em fuga. Na realidade, viram-se envolvidos na luta entre tutsis e hutus sem saber os motivos da sua existência, protagonizando o elo mais fraco da odiosa corrente do genocídio e, em termos proporcionais, os pigmeus foram os que mais baixas sofreram. Trinta por cento deles foram dizimados no genocídio, percentual superior aos dez por cento dos tutsis chacinados durante a matança de 1994 em Ruanda.

* * * * *

A imagem de um pigmeu com a expressão do rosto transformada, fitando-me com um olhar felino, não saiu da minha cabeça por muitos dias. A partir daquele momento, passei a acreditar nos boatos de que o pigmeu era sobrenatural. Sou uma médica e não tinha justificativas científicas para esta crença, porém a aparição fantasmagórica de Mukono, no escuro, perto da janela da Land Rover me fez rever alguns dos meus conceitos. A África é um continente imenso cheio de magia e nada impedia que um pouco dela tivesse tomado a matéria do twa. Então, passei a rezar com regularidade na capela de Padre Jumpe, temerosa de que algum mal me acontecesse e também mantive uma vela acesa ao lado de minha cama, aos pés de uma imagem da Virgem Maria. Os fosforescentes olhos de Mukono tentaram pular em mim na noite em que ultrapassamos a contenção hutu, parecendo não lhe pertencer e querer me dizer algo de forma urgente. Seria sobre um genocídio a caminho? Teria algum espírito tentado me envolver em algum enredo espectral? Estaria ele me alertando para o perigo do twa Mukono? Decerto, boas novas aqueles olhos em brasa não me trariam.
Entramos, finalmente, em minha residência e naquela noite, Dr. Mike dormiu comigo. Compensando tanta contrariedade, nós nos embalamos em um final de noite amoroso e vibrante. Ele, como uma serpente raivosa, apertava-me com força, tentando se vingar do ciúme que lhe fiz ao bailar à francesa. O meu lorde, quando tomava umas Primus, atendia aos meus desejos à cama, como na ocasião, fazendo-se espontaneamente de meu servo. Na ânsia de fugir das maldades que compunham minha mente naqueles dias de terror, mergulhei no pecado e entregue ao sexo libertino, abstraí-me do horror ruandês. Imaginei por quantas camas já tinham ecoado aquelas frases caprichosamente sussurradas ao meu ouvido na forma de uma rouca, erótica e inebriante sequência de gemidos. Na verdade, eu tinha escapado do feitiço twa apenas para cair na lábia inglesa. Por uns momentos, esqueci-me de que estava em um país sofrido e turbado. Dei vazão à minha juventude e sede de viver em resposta à inutilidade dos meus esforços para salvar da morte uma gente triste e amargurada. Enquanto sentia o toque do corpo quente de Dr. Mike, acercava-me da certeza de que não era meu o fardo do mundo, não criara o bem ou o mal e tampouco me cabia compreender toda aquela insensatez no baile de vampiros. Muito além de uma boa médica, eu era uma menina que almejava se realizar como mulher e, assim sendo, não inibi os pensamentos materialistas frutos da repulsa que tinha por muito do que presenciara naquela noite. Vi-me diante políticos poderosos que triunfaram no jogo eleitoral referendado pelos homens e que nada faziam para estancar o sangue que meus medicamentos não conseguiam fazer parar de jorrar do âmago daquele povo. Eu não era a responsável por tantas mortes e queria ter perfume, hidratante e água morna antes de dormir, pois minha grandeza como mulher era ser comum e usufruidora dos privilégios da simplicidade sem a necessidade de grandes feitos. Não sabia onde encontrar pessoas que pensassem assim, porém eu estava em busca por todo o tempo em disparada ao encontro delas. Dr. Mike nunca entenderia isso e, enquanto me beijava, moldava-me a gosto com seu erotismo deleitante. Eu sentia a frustração de ver que minha militância era um remendo malfeito, pois o ideal seria não ocorrer o movimento contrário e que tudo rumasse para um lado só. Às vezes, fraca, eu não mais desejava remediar, pois almejava ter casa, marido, filhos, paz, amor e um cachorro barulhento lambendo meu pé pela manhã. Queria envelhecer ao lado de um companheiro discreto e atencioso, que não fosse percebido pelas mulheres ao andar por aí, pois haveria de ser a estrela do meu espaço e a delegada do meu quarto. Para que tantos heróis no mundo? Estava farta deles todos e, se não fossem pelo mal e as privações, sequer existiriam. Eu ansiava caminhar pelas ruas de Nova Iorque em dias de verão como uma feliz moça anônima de batom na boca e de saia curta, certa do quanto é bom não ter o que fazer em passeio pelo centro de Manhattan.
Adormeci sob o manto do egoísmo e alienação moral e, ao amanhecer, percebi que Dr. Mike não estava mais ao meu lado na cama pecadora e blasfema ao lado da Virgem Maria em cujos pés havia uma vela gasta pelo arrependimento. Dele ficara tão somente o cheiro de suor, em meio aos odores de Primus, Mutzig e uísque que aderiam à minha consciência. Lembrei-me que prometera a ele ligar para o meu pai para lhe pedir que extinguisse a Interahamwe. Tomei banho, arrumei-me e saí em busca de um telefone público, sonhando salvar aquele país do genocídio que se avizinhava a galope, com um simples telefonema. Esta era eu, a Isabelle, na ocasião, ainda sem saber que o pior era provável e avizinhava-se de mim. O facão de Canisous Rubuga e o espírito de Mukono eram apenas um cartão de apresentação do demônio que visitaria Ruanda, desembarcado de um avião em chamas na noite de 6 de abril de 1994, próximo ao aeroporto Kanombe de Kigali.




5 – A VISÃO


Uma vez, quando eu estava em um dia daqueles tendo muito trabalho no Centro Hospitalar de Kigali e, resolvi fazer um pequeno intervalo e fui até o ponto de venda de Tharcisse Mugabe para descansar por uns instantes e conversar com o meu querido amigo. Uma brisa refrescante de um clima agradável envolvia o entardecer e, ao chegar, um aroma magnífico de flores tomou me acalmou meu coração.
— Tharcisse, vá comprar um sanduíche com refrigerante para mim e aproveite a oportunidade para comprar um para você também.
— É para já, Dra. Isabelle. Cuide bem das minhas flores.
Como sempre fazia, quando me realizava um obséquio, o prestimoso pigmeu embalou apressado em busca dos petiscos e tive oportunidade de observar detalhadamente as flores que comercializava. Peguei-as nas mãos e senti suas texturas; encostei-as na narina e inalei seus perfumes, tendo em mente os ensinamentos de Padre Jumpe e percebi que o twa absorvia bem as lições.
Quando retornou, perguntei-lhe como aprendera a ler e escrever.
— Foi difícil concluir meus estudos, Dra. Isabelle.
— Por quê, Tharcisse Mugabe?
— Os outros garotos do liceu não me queriam com eles.
— Você quer me dizer que sofria discriminações?
— Eu era maltratado e não podia me sentar perto dos outros alunos. A professora me batia quase todos os dias.

O que um twa tinha a fazer em um liceu? Para que eu queria aprender as letras?

— Uma vez, ela me mandou embora e disse:

Você deve mendigar na praça como fazem os outros pigmeus para ajudar sua família a encontrar sustento!

— Levou-me à feira, sentou-me em um canto da calçada e me fez pedir esmola aos tutsis e hutus que passavam por mim. Durante dois meses, ela me tirava da escola e me deixava no mercado em frente e no final das aulas eu voltava para entregar o dinheiro à professora. Dava-me umas moedinhas e ficava com a maior parte do dinheiro, dizendo-me quase sempre:

Está vendo, Tharcisse Mugabe, como você progride? Um twa não necessita da leitura para sobreviver, pois os tutsis e os hutus nunca lhe dará emprego que requeira algum conhecimento técnico. Não existem vagas de emprego suficientes em Ruanda sequer para eles, quanto mais para um pigmeu!

— Que horror, Tharcisse! Se visse essa sua professora, eu a esganaria.
— Nunca mais a vi, Dra. Isabelle, porque ela ficou em Byumba.
— Como você parou a mendicância?
— Meu pai desconfiou, quando percebeu que eu chegava com moedas em casa.
— O que ele fez ao descobrir isso?
— Deu-me uma sova daquelas.
— Isto não resolveu seu problema, twa.
— É verdade, mas ele pediu ajuda ao patrão, um hutu muito bom, e este se queixou ao chefe da colina, que, por sua vez, demitiu a professora.
— Devia ser importante o patrão do seu pai.
— É poderoso até hoje e comanda a colina de Byumba. É quase tão rico quanto o Sr. Emmanuel Habimana de Gitarama, mandando inclusive no chefe da colina.
— O que é chefe da colina?
— Ah, desculpe-me, Dra. Isabelle. Chefe da colina é como os twas se referem aos chefes de prefeituras. O Chefe da Colina de Byumba é o Chefe da Prefeitura de Byumba, pois os twas compreendem a divisão de Ruanda por distritos, prefeituras, vilas e cidades feitas pelos hutus e tutsis. Para nós, não há Ruanda, e sim várias montanhas, umas ao lado das outras.
— Ah! Ah! Ah! Faz sentido, Tharcisse Mugabe, e eu, igualmente, só vejo morros neste país.
— Nós somente percebemos a existência de um lugar chamado Ruanda quando caminhamos muito e somos identificados por outras pessoas como provenientes daqui.

* * * * *

Uma vez, um pigmeu que mendigava pelo centro de Kigali se envolveu em uma luta corporal desigual com um tutsi e chegou por si só ferido e cambaleante ao CHK. Na oportunidade, como frequentemente ocorria quando um paciente twa dava entrada, os médicos negaram-lhe a necessária assistência médica e viraram as costas. Encaminharam-no para mim.

Mandem esse twa para a médica residente americana!

Muitos colegas mantinham uma postura crítica de reprovação à minha opção pelos twas porque não queriam que um pigmeu ocupasse um leito limpo de hospital. Criaram o procedimento de atendimento aos twas no chão, quando eu não estava presente.
A acentuada perda de sangue do pigmeu decorria da falta de socorro imediato. A pobre criatura quase sem forças, sondou-me.
— Doutora, vou morrer?
— Enquanto você lutar há esperança, pois Deus está acima de nós. Não fale ou faça esforços desnecessários.
Não adiantou pedir ao twa que relaxasse, pois estava inquieto. Ele precisava de sangue e oxigênio urgentemente, porém, o diretor do hospital não liberaria facilmente recursos para um pigmeu, pois não tínhamos o suficiente sequer para os tutsis e hutus internados. Sendo assim, eu precisava da interferência de Dr. Mike para aliviar o sofrimento do pequeno ser.
— Rose, encontre urgentemente Dr. Mike e conte-lhe o que vê aqui.
— Seja mais específica, Dra. Isabelle, e diga-me o que devo dizer ao médico.
— Apresse-se, Rose, porque temos pouco tempo para atendermos este senhor. Apenas descreva o estado do paciente e responda às perguntas que Dr. Mike lhe fará. São muitas coisas que estão em falta por aqui.
Eu sabia que o inglês era um médico experiente e que, quando Rose contasse-lhe minha aflição, ele saberia exatamente o que me faltava. Como ela era uma boa enfermeira e desejava dominar o que envolvia a sua profissão, reclamou raivosamente ao sair.
— Ora bolas! Ainda hei de trocar de plantão para atender outro médico, Dra. Isabelle, porque a senhora está sem métodos!
— Não seja insolente, tutsi assanhada, e ande logo! Aposto que prefere assistir Dr. Paul Nicayenzi.
— Pare, Dra. Isabelle, e não me ofenda, pois sou apaixonada por Elizaphan.
Rose trouxe Dr. Mike puxado pelo braço e, ao chegar, ele olhou para o pequeno no leito ao meu lado e diagnosticou a morte com um olhar expressivo em minha direção. Mesmo sabendo ser uma tarefa inútil, caminhou em direção ao banco de sangue do hospital, em busca do recurso escasso. Sabia que eu o amaldiçoaria se não o fizesse.
— A senhora faz muitas oferendas para o seu Deus? — Perguntou-me o twa.
— Os cristãos não têm este costume e nos comunicamos com Ele por meio de orações.
— Música, não?
— Cantamos, entretanto, oramos para falarmos com Ele.
— Queria ouvir uma melodia antes de morrer.
Cantarolei um trecho de uma modinha twa, mas tive de desistir.
— Infelizmente, não tenho de memória nenhuma música do seu povo.
— Será que vou encontrar os meus ancestrais ou seus santos após morrer?
— Você é cristão?
— Nunca fui igrejeiro e apenas visitei a capela de Padre Jumpe uma vez, quando me falou dos santos.
— Estou certa de que você é cristão porque todos de boa alma no mundo o são, por praticarem os ensinamentos de Cristo. Somos todos filhos do mesmo Senhor.
— Diga que sou grato a todos e que morri em paz. Não tenho prenda e não sobrou nada para lhe dar.
— Não precisa me pagar, pois sou uma médica caridosa.
— A vida seria menos penosa, se houvesse outras pessoas boas assim.
— Se você encontrar os espíritos da selva, peça-lhes que também cuidem dos twas em vida.
O pigmeu se expressava em confissão derradeira, enquanto Eu, Rose e Dr. Mike escutávamos contemplativamente seu relato, respeitando a dor do enfermo.
— Conto que os espíritos gostem de mim, pois fui um bom caçador, um bom pai e um bom esposo, entretanto, não aprendi a mendigar bem.
Olhei tristonhamente para os amigos, quando o cansaço dos santos derreou-me as costas e me fez sentir a dor profunda no coração. Permaneci calada, por não ter o que lhes dizer e eles ficaram quietos por temerem me falar bobagens em meio a um luto preponderante. Simplesmente saí, em total quietude, com o peso do vazio que havia em mim, e em estado de contemplação, enquanto Dr. Mike iniciava o preenchimento do obituário do meu paciente.

* * * * *

O médico pediu à enfermeira:
— Vá atrás dela, Rose, e não a deixe só neste momento, pois Dra. Isabelle é uma garota imprevisível. Este país está mexendo com a cabeça daquela americana habituada ao bem-bom da vida.
— Não se inquiete, Dr. Mike e deixe lá a doutora, pois ela está bem. Apesar do pouco tempo que a conheço, imagino que a entendo melhor que à minha própria irmã. Ela precisa de uns instantes de reflexão a sós e mais tarde eu a procuro, já que não há lugar em Kigali onde possam escondê-la de mim.
— Tem razão, Rose. Você é uma boa enfermeira e uma amiga sincera de Dra. Isabelle. Ela só possui a nós dois neste país.
— Ela também conta com Tharcisse Mugabe. Não se esqueça, Dr. Mike.
— O twa só traz mais preocupação para ela.
— Apesar de ser o namorado dela, vejo que ainda não alcançou o coração daquela garota maravilhosa, pois não a conhece.
— Eu tento, Rose.
— É pouco! Dói nela ver o senhor de caso com as tutsis enfermeiras deste hospital e não deveria se enrabichar por elas. E seja mais discreto, pois nunca o perdoarei, se algo ruim ocorrer com Dra. Isabelle por causa dos seus atos de infidelidade, Dr. Mike. Chego, inclusive, a desejar que ela se envolva com o twa Tharcisse Mugabe que tanto a quer ou com quem mais lhe professe afeição.
— Você está sendo prolixa, trágica e exagerada!
— Creio que não. O twa dá tudo de si para a querida americana. Tive um sonho no qual ele entregou a vida por ela e imagino que seria capaz disto.
Dr. Mike não gostou do teor assunto e chegou a pressentir a possibilidade de Rose malquistá-lo com a amada. Então, achou por bem sair, após assinar o obituário do pigmeu, mesmo sabendo que para nada adiantaria a papelada, pois nem ao menos nome oficial registrado em cartório o morto possuía. Entregou-o à tutsi.
— Pegue esses formulários e providencie o enterro desse joão-ninguém, mas antes consiga umas flores com Tharcisse Mugabe para pôr sobre a cova do coitado.
Rose ficou só diante de dois pedaços de matéria sem saber o que fazer com eles. Então, chamou um colega do hospital, um hutu analfabeto que fazia toda sorte de serviço sujo para a direção do Centro Hospitalar, tal como desentupir privadas imundas e infectadas. Ela entregou-lhe o corpo do twa.
— Leve-o daqui!
— Para quem devo entregar este defunto de twa, Srta.  Rose Kabaguyoi?
— Não sei, pois ele não tem direito a serviço funerário.
— Vou jogá-lo no Rio Nyabarongo.
— Não! Cruz-credo, não faça isso! Se você atirar esse twa no rio e Dra. Isabelle descobrir, ou ela nos mata ou perdemos nossos empregos no mínimo.
— O que faço com ele, então? A senhorita prefere que eu o queime?
— Não, você está doido? Dê-lhe um enterro digno.
— Vou enterrá-lo nos fundos do terreno com o lixo hospitalar, senhorita Rose.
Muito incomodada, Rose gesticulava, caminhando entre os cantos da enfermaria batendo os pés no chão. Finalmente, acalmou-se, parou e pegou o hutu pela manga da bata, interpelando-o:
— Chega! Não me diga o que fará com ele, pois a médica me abandonou com esta tarefa ingrata. Será que ela não sabe que twa morto dá azar? Não quero participar disto porque já tenho pecados demais para justificar a Deus. Enterre-o bem fundo para que os abutres ou outros animais não o desencovem e o comam na frente de testemunhas. Se Dra. Isabelle perguntar algo, diga-lhe que o agente funerário veio buscar o corpo e o levou para enterrar como indigente no cemitério. Aproveite e leve isso também.
Ao hutu analfabeto não era praxe se entregar escritos e, assim, não soube que destino dar ao obituário do twa.
— O que é isso, Srta. Rose Kabaguyoi? O que faço com estes papéis?
— Enterre-os junto com ele, pois isto é o que foi na vida. Que leve consigo para onde vai, de forma que saiba que precisa de um nome.
O serviçal do CHK amortalhou o corpo do twa com um saco e o misturou aos rejeitos hospitalares dentro de um carrinho de lixo, camuflando-o, enquanto transitava por dentro da edificação. Não sentiu o menor constrangimento e continuou coletando o lixo dos cestos postos ao longo dos corredores do hospital.

* * * * *

Após a morte do twa, lembrei-me de Tharcisse Mugabe e fui ter com ele na carrocinha de vendas de flores à sombra do podocarpo. Como estava me sentindo mal e precisava espairecer um pouco, as suas histórias me fariam bem naquela hora. A morte do pigmeu sob os meus cuidados me atormentava e, por isto, decidi procurar o meu amigo. A tarde beirava o seu final e o clima começava a esfriar um pouco. Quando caminhava pelo pátio do Centro Hospitalar, deparei-me com um grupo de twas. Estavam sentados em um gramado, conversando animadamente, fumando tabaco e bebendo algum tipo de preparação caseira. Ao passar perto deles, uma pigmeia chamou meu nome.
— Dra. Isabelle!
Domitilla me dirigira a palavra. Virei-me e lhe perguntei:
— O que você quer de mim, Domitilla?
— Nós soubemos que um matwa foi trazido ferido para este hospital. É alguém da nossa comunidade?
— Acredito que não, pois me falou que é de Ruhengeri. Teve o azar de escapar de uma região de conflitos armados para vir a tombar esfaqueado em Kigali.
— A senhora sabe o nome dele?
— Ele não portava documentos de identificação e, como estava muito fraco, não o entrevistei. Tratei-o apenas por senhor. Procure uma enfermeira chamada Rose Kabaguyoi e peça-lhe que lhe mostre o corpo, pois talvez algum de vocês o reconheça e peça a um parente para vir buscá-lo.
Mukono estava entre os integrantes do grupo e resolveu brincar comigo dirigindo-me a palavra na língua nativa dos twas, o rukiga, certo de que eu nada entenderia.
— Ori ota, nyabo?" (Como vai você, senhora?).
Eu não perderia a oportunidade de lhe mostrar que as minhas conversas com Tharcisse Mugabe estavam surtindo efeito e, portanto, respondi, para surpresa dele:
— Ni gye. Shana iwe? (Estou bem, e você?).
Os twas sorriram e bateram palmas para mim, caçoando de Mukono. Ele me questionou, então:
— Oraire ota? (Como passou a noite?).
— Ndaire gye. (Eu passei bem).
— Oine kyayi? (Aceita um chá?).
— So Noogamba ki? (O que você disse?).
Domitilla falou-me pausadamente.
— Kyayi! (Chá!). Ela ofereceu-me uma xícara de chá e acrescentou:
— Kyayi gye! (Chá bom!).
Eu a entendi, pois já tinha ouvido aquela palavra.
— Kyayi ki? (Que chá?).
 Mukono acrescentou:
— Otafayo. Oraire gye, nyabo. (Não tenha receio. Tenha uma boa noite, senhora).
Não entendi aquelas últimas palavras, no entanto, como eu gosto de chá-verde, chá de gengibre e chá-preto, eu o bebi agradecida, ainda mais por eles terem-me proporcionado um diálogo instrutivo.
— Yebare! (Obrigada).
Eu perguntei a Domitilla.
— De que é feito este chá?
Mukono estava urinando por trás de uma árvore e apenas ele tinha a resposta exata.
— É feito de ervas da floresta e sinto que há uma mistura delas neste chá, Dra. Isabelle. Foi Mukono quem o fez.
Eu estava com a garganta seca e com sede e, talvez, a beberagem dos twas me proporcionaria uma oportuna hidratação. Todavia, estava temerosa porque ele começava a queimar o meu aparelho digestivo. Mukono aproximou-se e eu o questionei.
— Para que serve este chá, Mukono?
Mukono respondeu:
— É um chá fortificante, Dra. Isabelle, e não tenha medo porque este chá nunca matou sequer um pássaro. A senhora se sentirá mais forte para enfrentar os problemas da vida com o seu uso habitual.
— Energético?
— Acho que sim, já que os soldados me pedem um pouco quando vão para a frente de batalha.
— Você quer dizer estimulante?
— Não estou certo, mas este deve ser o tipo desse chá.
Estava a me sentir fraca e cansada e um energético me caía bem.
Achei Mukono um pouco estranho, contudo creditei sua agitação ao fato de ele estar a fumar o cânhamo. Pelo aroma, imaginei que entre as suas ervas estava pelo menos alguma das que eu comumente utilizava nas minhas infusões. Senti-me confiante diante disto e tomei o restante do líquido daquela que julguei ser uma inocente xícara de chá ruandês oferecida a mim pelos twas em um final de tarde no pátio do CHK. Dr. Mike já me alertara para que fosse cuidadosa ao ingerir qualquer substância oferecida pelos pigmeus, se eu não conhecesse a procedência. Ele tinha trabalhado com um grupo de cientistas belgas no Parque Nacional Impenetrável do Bwindi em Uganda realizando pesquisas científicas de campo e descobrira que existia muita coisa ruim nas ervas que aquele povo utilizava em rituais religiosos e confraternizações pagãs. Para Dr. Mike, tais pessoas, por meio do processo evolutivo e da seleção natural, adquirira tolerância a algumas substâncias que os europeus e outros povos não possuem. Na ocasião, eu estava cansada demais para me lembrar do conselho que me ele tinha me dado havia meses.
Logo após tomar a bebida oferecida por Mukono, senti que meu coração adquiriu ritmo acelerado, minha boca secou e meu corpo aqueceu. Por ser médica, percebi as alterações do meu interior e que algo não estava ia bem. Imaginei-me, porém, com uma indisposição comum gastro emocional, após uma jornada de trabalho atribulada, ainda que potencializada pelo contato inusitado com o chá de Mukono. Conviveria com uma perturbação anímica até a primeira boa noite de sono. Cogitei entrar no hospital e pedir a opinião de Dr. Mike sobre o meu estado, contudo, como eu o envolvera no atendimento do twa, concluí que tinha esgotado minha cota da paciência do médico inglês no dia. Tateei-me, encostando a mão no pescoço e no pulso, buscando informação por meio da pressão arterial e temperatura corporal. Domitilla me olhou, desconfiada.
— Está se sentindo bem, Dra. Isabelle? — Ela volveu-se para o marido e perguntou: — O que você deu para ela beber, Mukono?
— Apenas o nosso chá.
Domitilla olhou-me e revelou:
— Este chá pode lhe causar algum estranhamento, doutora, já que é a primeira vez que o toma e Mukono não deveria tê-lo lhe dado. Vá descansar em casa e aproveite a sensação de bem-estar que ele costuma nos proporcionar. Com o tempo, ao passo que o beber mais vezes, ficará acostumada e não mais sentirá incômodo decorrente dos seus efeitos.
— Está tudo bem, Domitilla. Estou um pouco tonta, mas, certamente, não é somente por causa desta infusão, pois tive um plantão concorrido. A propósito, qual erva que vocês põem nele?
— Não é só uma qualquer e há umas três delas, Dra. Isabelle. Porém, a mais forte é um cogumelo.
— Cogumelo? Caramba! Pensei lidar com inofensivas folhinhas.
Despedi-me dos twas e caminhei em direção às flores e ao podocarpo. Inadvertidamente, quando cheguei perto de Tharcisse Mugabe, não lhe dei atenção e continuei caminhado. O twa estranhou o meu comportamento.
— Dra. Isabelle, aonde vai?
— Não é da sua conta, twa! Vou ao encontro de uma amiga que acaba de me chamar.
Tharcisse Mugabe me olhou e imaginou que algo não estava bem, pois eu nunca passaria por ele sem lhe dirigir a palavra. Então, ele me pegou pelo braço e me levou de volta para a sua barraquinha de flores. Por estar tonta, não esbocei reação e aceitei de bom aviso sentar no seu banquinho. O twa olhou de um lado para o outro, buscando alguém conhecido, no entanto, não havia nenhum à vista. Então, ele me propôs:
— Vamos, Dra. Isabelle, voltar para o hospital, pois, temos de encontrar Dr. Mike ou a senhorita Rose Kabaguyoi porque precisa deles. O que a senhora tem?
— Não sei, Tharcisse. Suponho que um chá de Mukono está a me fazer mal.
— Meu Deus! Eu não lhe disse que Mukono e Domitilla são feiticeiros e que não deve aceitar nada que lhe ofereçam para beber ou comer, sem saber o que seja.
— Você acha que eles me envenenaram?
— Claro que não, Dra. Isabelle!
— Ainda bem, twa, pois estou perdendo a percepção do meu entorno. Vá logo chamar Dr. Mike porque há algo estranho neste chá.
— A senhora tomou o chá de cogumelos?
— Sim.
— Ele a fará ver coisas, contudo não a matará. No entanto, como é uma pessoa tão diferente de nós twas, não sei o que lhe acontecerá. Quem foi a amiga que a chamou?
— Que amiga?
— Acabou de me falar que não ficaria ao meu lado porque a haviam chamado.
— Sim, sim, tenho de me apressar porque ela precisa de mim.
— Para onde ela a levará, Dra. Isabelle?
— Para a cerca, Tharcisse. Para a cerca de bambu!
— Deus do céu, que cerca vem a ser essa? Onde a encontrará? Aguarde-me aqui, pois vou chamar Dr. Mike ou a Srta. Rose Kabaguyoi, correndo!

* * * * *

Ideias e percepções começavam a se misturar com imagens que apareciam na mente dela. O twa tentou erguê-la, porém não conseguiu firmá-la de pé. Ele se desesperou e correu para pedir a ajuda de alguém do círculo de amizades de ambos. Tinha consciência de que a amiga possuía uma reputação a zelar no trabalho e, sendo assim, não a exporia a constrangimentos, adentrando com ela em mal estado no CHK sem saber se fizera uso de entorpecentes. Sem alarde, passar o caso ao Dr. Mike. Pediu ao porteiro do CHK, que ficasse de olho nela do outro lado da rua, no entanto, o funcionário estava atarefado e, facilmente, esqueceu-se da existência de Isabelle.

* * * * *

Percebi que algo inusitado acontecia, vinha do ambiente e saía de dentro do escuro da noite que se iniciava, despregando-se do ar. Algo imaterial estava por ali, espreitando-me sorrateiramente, como um leopardo a esquivar-se do luar ao surpreender a gazela no escuro. Um ser etéreo se esforçava para se comunicar e alguns estímulos me preparavam para um encontro com uma aparição em via de chegar. Um contato se fazia iminente e foi então que, por meio da tontura, senti o tempo desacelerar. As folhas do podocarpo que caíam demoravam mais tempo para atingir o chão e cada segundo valeu um minuto, cada olhar uma paisagem inteira e cada lembrança um passado distante. Então, uma senhora bonita e envolta por uma luz azul surgiu diante de mim, na forma de um espírito de uma mulher morta no passado em Kigali. Ela aproximou-se, pegou-me o braço e me ergueu, convidando-me para acompanhá-la a lugar incerto. Alteei a cabeça e vi uma linda dama africana, dirigindo-me a palavra meiga.
— Isabelle, por que você demora tanto?
— Desculpe-me. Tharcisse Mugabe me segurou aqui.
— O twa?
— Sim.
— Deixe-o onde está, pois está em paz e preciso mais de você.
— O que você quer de mim? Quem é você?
— Venha comigo e logo saberá.
A formosa africana me pegou pela mão e me levantou do banquinho. Eu sorri.
— Se você não tivesse me ajudado, eu nunca conseguiria me elevar deste assento.
Ela me falou, então:
— Achegue-se, Isabelle, venha comigo e dê vazão à fantasia.
Andamos à noite pelas escuras ruas de Kigali até chegarmos a um terreno baldio, amplo e muito arborizado, um bambual.

* * * * *

Tharcisse Mugabe retornou com Dr. Mike e Rose e, ao chegar, angustiou-se, por não ver a amada onde deveria estar.
— Nossa Senhora, alguém levou Dra. Isabelle!
— Como sabe que a levaram? Não poderia ter saído daqui por si só?
— É pouco provável, Dr. Mike, pois ela não conseguia andar e sequer a direção do hospital aqui em frente sabia.
Rose decidiu agir.
— Vou telefonar para tenente Fred Kaka!
— Tenha calma, Rose. Primeiro damos uma volta pelo quarteirão cada um por si sem alardes e daqui a 15 minutos nos reencontramos neste lugar.
Procuraram-na por toda a vizinhança sem sucesso e, ao se reverem defronte à carrocinha de flores, Rose não mais aceitou contra-argumentos e ligou para tenente Fred Kaka. O militar chegou acompanhado de quatro soldados e todos iniciaram uma busca por toda a cidade, esquina por esquina, durante a noite inteira. Além do veículo militar de tenente Fred Kaka, a Land Rover igualmente foi utilizada. Tomaram como base para a tarefa a informação de Tharcisse Mugabe de que a médica teria ido para um cercado de bambu. Dr. Mike, incrédulo, perguntou ao twa:
— Cerca de bambu? Você está doido, twa? Tem certeza de que foi isso mesmo que escutou Dra. Isabelle dizer?
— Sim, Dr. Mike, tenho sim.
— E você não teve a esperteza de perguntar onde fica esta porcaria de cerca?
— Ela não sabia.
— Por que não?
— Ela me disse que estava sendo chamada para ir à cerca de bambu!
— Quem a chamou, twa?
— Não sei, Dr. Mike. Ela falava para uma mulher que supostamente estava ao nosso lado pedindo-lhe algo, mas não havia nada além do vento à nossa volta. Amedrontei-me e fui chamar o senhor.
Rose asseriu.
— Ela deve ter conversado com algum morto e aposto que Dra. Isabelle está tendo uma revelação. Ela costuma ter estas sensações, ao falar enquanto dorme, e o faz tão com tanta convicção que me dá arrepios. A Dra. Isabelle é médium e fala aos espíritos!
— Só me faltava isso daquela americana! Agora é portadora de mensagens do além? E você, Tharcisse Mugabe, twa covarde e imprestável, não deveria tê-la deixado sozinha apenas por causa de uma alma boba das trevas. Creio que essa história tem a ver com o chá de Mukono e quero averiguar a beberagem do feiticeirozinho de segunda categoria. Vamos todos com tenente Fred Kaka procurar Dra. Isabelle, então!
Como existiam vários terrenos cercados de bambus em Kigali, tiveram muita dificuldade para localizar Dra. Isabelle, fato que só aconteceu com a chegada dos primeiros tênues raios de sol, à promessa de amanhecer.

* * * * *

Ao longo do caminho, dialogava com a figura.
— O que você sente, Isabelle?
— Cansaço, muito.
— Então pare de caminhar e simplesmente voe.
Eu levitei a meio metro do chão e comecei a me mover reproduzindo a ondulação da superfície do chão e uma prazerosa sensação de alívio tomou conta de mim ao perceber-me sem peso e enxergando um mundo de cores diferentes. Tudo estava mais nítido aos meus olhos e a minha percepção melhorou bastante. Estava espiritualizada e radiante, e, pela primeira vez na minha vida, voava.
— Podemos subir mais? — Indaguei-a.
— Você quer ir pelo caminho das nuvens?
— Sim, sim, é evidente que quero!
De repente, estávamos bem alto, jornadeando contíguas ao azul infinito, colhendo cachos de nuvens pelo céu. Lá de cima, eu via uma ondulada Kigali com suas luzes acesas e seu dorso atoalhado de sombras que subiam e desciam os morros fartos de pirilampos. A cidade com seu manto escuro rasgado por pontos de luz acomodava-se para espelhar o céu estrelado a cima de mim. Ao ver o teto do CHK e a carrocinha de Tharcisse Mugabe, estendi a mão pela qual o desejo fez subir uma violeta-africana do ramalhete na terra até o céu ao alcance de minhas mãos.
A madona africana me levou para um terreno baldio tracejado por cercas de bambu e, por trás de uma grande pedra, parou. Quando cheguei ao seu lado, apontou-me o chão para que eu visse os restos de uma ossada de bebê. O pequeno esqueleto estava incompleto com seus ossos remanescentes limpos, tendo alguns sidos em parte devorado por insetos e vermes. Então, deu-me a entender o porquê de estarmos ali. Ela queria que eu zelasse pelos ossos restantes do anjinho sucumbido, que lhe fora um rebento que não pôde proteger e se valia de minha faculdade para sossegar o coração. Tirei minha bata e a estendi no chão onde depositei os ossinhos, um por um. Ela me explicou:
— Saiba que tive filhos, Isabelle, pois sou o espírito que representa as mães deste mundo. Infelizmente, muitas sofrerão este ano. Peço que faça algo por todas elas.
— O que me cabe fazer?
— Você dever ser forte, ainda que posta a dura prova. Acredite em mim ainda seja teimosa como seu pai.
Então, a bela e negra mulher se tornou uma graciosa dama branca e vi minha mãe à minha frente. Chorei com saudade dela e gelei por dentro, pois a voz que provinha da luz era a dela e a frase era a que eu estava habituada a ouvir Você sempre é teimosa como seu pai. Perguntei:
— Escolhida para quê, minha mãe?
— O Diabo a quer, Isabelle! Ele a testará, mas seja forte e não arrefeça a crença em Deus. Não deixe que a vença e sevicie a sua alma.
— Quando será este encontro, mãe?
— O Coisa-má em breve chegará a este país. Fique de olho no Rio Nyabarongo, pois por lá ele passará entre os dois mundos, trazendo uma bola de fogo que demarcará o limiar de um breve, mas fecundo reinado ruandês. Não posso mais encontrá-la na volta para casa, pois você está só. Todavia a guiarei enquanto puder.
— E o pai?
— Não mais estamos juntos.
— A senhora morreu, mãe?
— Não chore ainda e guarde lágrimas para os dias que virão.
Na África misteriosa de tantos encantos e encantamentos, eu, uma pessoa sensitiva, mergulhara na magia de um continente exótico e vieram a mim com preocupações. Fizeram-me de canal e me passaram um prenúncio aterrador e, assim sendo, eu precisaria tomar cuidado. Volvi-me para o ectoplasma e o vi sorrir, enquanto se esvaía no ar, como uma boa e bela alma esfumada, eterizada e repleta de aroma e luz. Acenando em minha direção, o feérico espectro, arquétipo da maternidade humana, dissolveu-se na noite escura. Então, dormi um sono doce e reconfortante, no qual, em meio a anjos, minha mãe me levou para passear por um caminho celeste de luzes azuis em um lindo sonho sideral ocorrido longe de Ruanda e o mais próximo de Deus que eu jamais ousaria estar.

Daí a algumas batidas das horas, escutei rogos repetidos e aflitos.
— Dra. Isabelle! Dra. Isabelle, o que a senhora tem?
Era a voz de Rose. Eu estava tonta, porém a insistência e aflição da amiga me trouxeram de voltar à realidade. Ali estavam, além da enfermeira tutsi, Dr. Mike, Tharcisse Mugabe e tenente Fred Kaka. Rose, ao perceber meu estado, começou a lamentar. Olhei-a e percebi o que tentava me dizer. Ela falou para os homens, então:
— Saiam, por favor, e deixem-me falar com ela!
Dr. Mike olhou para Rose e argumentou.
— Temos de levá-la imediatamente para o hospital.
Ela respondeu.
— O que menos ela precisa nesta ocasião é de remédio.
— Está bem, você dispõe de cinco minutos e faça o melhor que puder.
A luz da manhã surgia por sobre as colinas ruandesas. Rose chorava, por me ver em más condições, enquanto eu estava sentada, avaliando-me com atenção. Minha roupa estava rasgada e havia marcas de violência em meu corpo. Então, o medo se apoderou de mim e mirei minha amiga, procurando uma explicação para o meu estado. Ela me explicou:
— Nós não sabemos o que lhe aconteceu nesta noite, Dra. Isabelle.
Ainda tonta, perguntei:
— Como me encontraram aqui?
— Procuramos por toda a noite e somente há poucos instantes alguém ligou para o distrito policial informando ter visto um corpo de mulher branca estirado neste matagal. Quem a trouxe aqui?
— Minha mãe me acompanhou até aqui, Rose.
— Não fale assim, Dra. Isabelle, senão eu vou chorar mais ainda.
— Por que você chora?
— Não vê? A senhora pode ter sido violentada.
— Eu? Você está louca?
— Não percebe seu estado? Os soldados estão assustados e, por sinal, ouvi-os dizer que a senhora está da cor do vento.
— Nossa, que cor é esta?
— Não sei, nem posso imaginar, entretanto, não deve ser boa coisa. A senhora está pálida, possui umas partes amareladas e apresenta algumas marcas roxas pelo corpo. Bateram na senhora?
— Provavelmente não, pois não sinto dor.
Avaliei-me e me senti constrangida, desejando um espelho para ver a tonalidade da minha face. Provavelmente, eu estava pálida e com alguma intoxicação.
— Rose, você é mulher como eu e sabe que, se eu tivesse sido maltratada sob dopagem, perceberia agora, não acha?
— É verdade, Dra. Isabelle.
— Será que Mukono me fez algum mal? — Busquei alguma explicação.
— Não poderia ter sido ele, pois apanhou muito e teria confessado sob a tortura que lhe impôs o pessoal de tenente Fred Kaka. Além do mais, há testemunhas que dizem ter passado a noite ao lado dele, até a polícia o pegar. Alguém pode ter se aproveitado da senhora, enquanto estava inconsciente. Existem muitos hutus maus em Kigali.
— Não! Se não foi Mukono, não poderia ter sido ninguém mais deste mundo. Hei de acertar as contas com aquele twa.
— Tenha calma, Dra. Isabelle, e não guarde rancor no coração. Mukono me parece ser inocente e o único mal que ele fez foi ter-lhe dado um chá.
— O que havia no chá, Rose?
— Até agora não sabemos, mas o Dr. Mike está entregando uma amostra do cogumelo para Padre Jumpe analisar. O reverendo pode nos esclarecer algo sobre a maldita infusão. A senhora fará os exames?
— Que exames?
— Eu escutei o médico sussurrar ao tenente que a submeterá a um exame de corpo de delito, pois ficaram todos desconfiados de violência sexual, em virtude do seu desalinho, quando a encontramos semimorta e deitada sobre esta pedra.
— Ora essa, ele está doido? Nem pensar! Estou com as minhas roupas em desalinho, possivelmente, por ter tentado me livrar dos vômitos que me cobrem o corpo e não me sinto violada. Se algo me tocou, certamente, foi um espírito.
— Um espírito ou as mãos mágicas de um feiticeiro do tipo de Mukono, Dra. Isabelle?
— Rose, no íntimo, não quero crer que um twa mandingueiro possa ter tanto poder assim. Estou fiada no bem, pois recebi a visita da minha mãe e ela não deixaria que me fizessem mal. Mostrou-me uns ossos de criança atrás daquela pedra ali e me comprometi com ela que lhes daria um enterro digno. Confirme isso para mim, por favor.
Rose foi ao local indicado e constatou a presença da ossada exposta de um rebento, embrulhada em uma peça do meu vestuário. Neste instante, Dr. Mike a chamou e eles conversavam, quando Padre Jumpe se aproximou para me confortar.
— Rose, Padre Jumpe acabou de chegar.
— Eu o vi, Dr. Mike, e ele está lá dentro do terreno com Dra. Isabelle. O que ele lhe disse?
— Ele traz uma informação de Washington para Dra. Isabelle.
— Qual?
— Nós precisamos levá-la para a casa dela e não para o hospital porque ela receberá uma notícia trágica.
— Hem! Fale-me logo, por favor.
— A mãe dela morreu ontem à noite em Washington.
— Nossa Senhora dos céus! Dra. Isabelle me disse que falou com a mãe e que foi esta quem a trouxe aqui.
— Nada a fará repousar num leito hospitalar. Vamos levá-la para casa sob o conforto que possamos dar.
Passei uma semana em Nova Iorque, em decorrência das exéquias e velório da minha mãe. Meu pai ficou profundamente sentido com a perda da companheira de longas datas e não se importou quando lhe comuniquei que retornaria a Ruanda para terminar o meu estágio na Cruz Vermelha. Pela primeira vez, não passou a mão na minha cabeça e nem me deu conselhos sérios. Apenas alvitrou-me vagamente.
— Vá, filha e cuide-se por si só, agora que você é uma mulher adulta. Estou ficando velho e chega a hora de você seguir seu rumo. Estou por aqui, caso precise de mim.
Partiu o meu coração ver o meu pai naquele estado e, durante toda a semana, não saí do lado dele. Contudo, tinha de retornar a Kigali, pois prometera isso à minha mãe, ainda que estivesse sob o efeito da psilocibina.

* * * * *

A psilocibina é o principal alcaloide psicoativo existente em alguns cogumelos e seus efeitos alucinógenos variam de um indivíduo para outro, assemelhando-se aos do LSD. Provoca desde excitação e euforia sob doses pequenas a distorções de formas e cores e até alucinações com porções maiores. A ingestão se dá por intermédio de chás de cogumelo desidratado e moído e a primeira impressão costuma ser uma leve tontura, seguida de um possível desconforto gástrico e vômitos. É possível haver alterações nas percepções visuais e na noção de espaço e no clímax, há o estreitamento do campo de consciência. O usuário dessa substância pode embarcar em um quadro totalmente desconexo da realidade com devaneios intermitentes que podem provocar uma relação entre o real e o imaginário sob domínio de um sentido diferente. Um perfume talvez invoque uma cor ou um som carregar uma imagem. Pode-se ouvir, cheirar, sentir ou tocar a inexistência. Se Isabelle tivesse ingerido uma beberagem mais concentrada, não se sabe se, até hoje, não estivesse em delírio, de mãos dadas à mãe, num éden iridescente e paradisíaco, envolta em névoas frias ao lado de animais alados e anjos abençoados pelo toque de Deus.
Dr. Mike perguntou a Padre Jumpe:
— O senhor quer me dizer que nesse cogumelo em sua mão existe a psilocibina, Padre Jumpe?
— Exatamente, Dr. Mike, e foi este singelo vegetal que deixou Dra. Isabelle naquele deprimente onirismo.
— Como o twa Mukono pôs a mão nele?
— Checarei se sua informação a tenente Fred Kaka de que coletou os cogumelos nas matas é verdadeira. Tenho minhas desconfianças, mas isso ele terá de me esclarecer.
Até Dr. Mike, insensível por devoção, comiserou-se na ocasião.
— Não bata mais no coitado, Padre Jumpe, porque ele já apanhou muito do pessoal de tenente Fred Kaka.
— Pela Virgem Santíssima, eu não maltrataria o twa! Não se esqueça de que sou um ministro de Cristo.
— Às vezes, olho para o senhor e me esqueço disto, padre. Ah! Ah! Ah! Ah!
— Não ria, Dr. Mike! Não vê o estado da sua companheira? Ela acaba de perder a mãe.
— Como queira, Padre Jumpe. A propósito, de qual outro jeito Mukono poderia ter conseguido os cogumelos?
— Infelizmente, comigo.
— Como assim?
— Tenho amostras deste vegetal em meu herbário. Não se esqueça de que Mukono vem muito aqui me apresentar suas ervas para análise qualitativa.
Mukono ia à casa do reverendo, em auxílio nos trabalhos de farmacologia para laboratórios internacionais. O padre continuou sua argumentação.
— Mukono é um twa sagaz que vive na selva e, talvez, tenha sentido algum aroma significativo nos meus cogumelos que nos seja indiferente.
— Ele farejou a psilocibina dentro do cogumelo...
— É incrível, mas aposto ser verdade. Aquele twa doutorou-se nas feitiçarias!
— Tudo bem, por esta nós já passamos e, de agora em diante, esconda bem seus fungos para que outras pessoas não passem pelo constrangimento de Dra. Isabelle.
— O problema é que os outros twas dizem que Mukono bebe este chá há, pelo menos, dois anos.
— Nossa! Faz tempo que o twa malandro o rouba, Padre Jumpe. Ainda bem que levou umas correadas dos militares.
— Eu não seria tão idiota, Dr. Mike. Pense um pouco na questão, já que é homem das ciências assim como eu.
Após raciocinar por alguns segundos, Dr. Mike apavorou-se.
— Santo Deus, Mukono cultiva este cogumelo no mato!
— Bingo, meu amigo. Ele introduziu uma espécie exótica no ecossistema ruandês.
— Este povo já é tão sofrido e ser confrontado a mais um entorpecente não é uma boa notícia.
— Eu hei de apertar o twa, mas preciso da sua ajuda para extinguirmos o canteiro onde Mukono planta a psilocibina.
Após forçarem Mukono a indicar os locais de plantio dos cogumelos, o médico e Padre Jumpe passaram três dias destruindo exemplares da espécie, porém, no final, cansado e constatando ter diante de si um desafio hercúleo, o pároco, resignadamente, concluiu:
— Não adianta mais, Dr. Mike, pois veja estes brotos ao longo do caminho. A natureza recepcionou o cogumelo intruso como se fora natural deste ambiente e rezemos para que não entre na dieta de animais irracionais e tampouco na dos seres humanos.
— Talvez esse cogumelo esteja por aqui há algum tempo.
— Não sei, amigo, e ainda que Mukono me diga que esta frutificação seja ruandesa desde o cretáceo, não posso confiar no twa ardiloso. Somente uma auditoria florestal poderia levantar isso e seria um projeto magnífico obstar a evolução dessa espécie em solo ruandês. É uma tarefa de titãs, Dr. Mike, e não para nós, simples mortais. A natureza seguirá seu ciclo evolutivo e, desta vez, com a interferência maligna do ser humano.
— O senhor quer dizer com a ingerência de Mukono?
— Ele não deixa de ser humano, Dr. Mike.
— Às vezes, até um ateu convicto como eu fico pendendo para o lado das crenças de Dra. Isabelle de que o twa é um bicho encarnado ou um satanás em pele de gente.
Padre Jumpe fez o sinal da cruz e falou:
— Cruzes! Não cite o nome do capeta na minha frente.
— Sendo assim, Padre Jumpe, o senhor terá de exorcizar o twa. Ah! Ah! Ah!
Dr. Mike era um cientista herege e nunca acreditaria em possíveis poderes sobrenaturais de Mukono. Portanto, ficou satisfeito ao saber da presença da psilocibina consumida por Isabelle e não aceitou que fantasmas e almas do além apareceram para ela por meio dum contato místico. Sustentou em cada roda de fofoca em Kigali da qual participou que a americana não conversara com os espíritos, mas simplesmente tinha feito a cabeça numa boa. A má fama da médica aumentava a cada jornada e, mais uma vez, seu nome foi ligado a drogas. Os mexericos de que a gringa era louca cresceram em Ruanda e as maledicências também. Uns afirmaram que ela tinha sido vista de joelhos próxima a um bambual, falando com anjos e santos, e iluminada por uma luz azul nunca antes presenciada na terra. Outros alardearam que os soldados a encontraram em uma orgia com os twas regada a álcool e drogas desconhecidas. Houve um disse me disse de que um anjo ou um santo a revelara que o Diabo chegaria brevemente a Kigali e este foi o boato mais recorrente em Ruanda.
Nos dias que se seguiram, Isabelle teve de rogar a ajuda de tenente Fred Kaka para afugentar a romaria de gente que acorria à sua rua à espera de milagres e curas para câncer, AIDS e paralisia, entre outras mazelas, de entes queridos. Ele ficou chateado porquanto as pessoas não o obedeciam e o faziam de bobo, pois, assim que dava as costas, retornavam para incomodar a pobre mulher. A solução somente chegou quando ele, com seus soldados, dispararam fortes rajadas de metralhadora para todos os lados do céu, dispersando a multidão que fugiu em pânico. Daí em diante, ninguém mais acreditou que alguma graça divina pudesse acontecer em frente daquela casa.

— Porém, Dr. Mike, Dra. Isabelle disse para Rose Kabaguyoi que viu e falou com a mãe no exato momento em que esta morria em Nova Iorque.
— Quê? Basta, twa! Isso é uma conversa fiada de Dra. Isabelle e daquela tutsi que faz tudo que agrada à sua alma gêmea americana. — Dr. Mike expressava sua aversão a justificativas místicas para os dilemas da existência material.
— O senhor crê que as duas, por algum motivo, combinaram sustentar um faz de conta?
— Prefiro acreditar em uma mentira deslavada do que no fato de Dra. Isabelle ter recebido uma revelação da mãe moribunda de que o Cujo está prestes a aportar em Kigali por meio de uma língua de fogo vinda das profundezas do Nyabarongo.
Dr. Mike sinalizou ao metediço pigmeu que não lhe aprazia o incoerente lero-lero twa, todavia o outro não percebeu e perseverou em seu interrogatório irritante e palavreado sem fim, na esperança de ter suas inquietações dirimidas pelo inglês. Um inverossímil assunto com tema místico avinagrou o indivíduo que, em vão, procurava o Deus de ombro amigo, ladeiro, simples e misturado aos homens de suor honesto. Era generalizadamente cético e um ateu radical convicto cujo tema religião só a ele sabia como conduzir. Opunha-se à universalização do credo, por acreditar ser toda unanimidade uma alienação com foco. Por isto, untava sua consciência com um verniz protetor de indiferença. Se não acreditava na existência de Deus, como poria fé na presença do maligno em Kigali? Costumava dizer que era um médico cruzado a vagar pelo mundo executando uma medicina material e assistencialista onde quer que existisse uma catástrofe moral e social. Quando jovem, fora um crente médio regular, porém os mais de trinta anos de profissão vendo o sofrimento, a dor e a miséria do ser humano petrificaram e fecharam seu coração à salvação Divina. Dizia que fora apresentado a um Deus pétreo, punidor de mão pesada e de chicote fino que infligia o sofrimento justamente aos mais fracos e, por vingança, descambara para os lados do niilismo.
— Eu acredito, Dr. Mike, e não quero pagar para ver. O senhor não?
Incomodado com o falatório do impertinente colega curioso, que atrapalhava um momento de lazer, Dr. Mike pegou-o pelo colarinho e o pontapeou para longe de si, despedindo-o com o intuito de terminar a incômoda ladainha pigmeia. Falou-lhe asperamente.
— Besteira, rapaz! Por qual motivo o Diabo iria escolher este fim de mundo para seu turismo terrestre? Nem ele iria querer trabalhar tanto e se vier para esta terra, não tomará banho em rio algum. Lúcifer seguirá rumo ao norte para obstar os Inkotanyis e sua Frente Patriótica Ruandesa, a única esperança de salvação dos coitados tutsis de Kigali. Deixe-me tomar minha Primus em paz, Tharcisse Mugabe e vá vender suas papoulas murchas e fazer suas perguntas idiotas à sua santa Isabelle. Hei de esganar você, twa, por desejar minha mulher. Ah! Ah! Ah!
Assustado com o rompante de ira do descrente doutor, Tharcisse Mugabe afastou-se de súbito, temendo levar mais uns safanões. O frágil pigmeu tinha medo do inglês e percebeu, finalmente, que o médico cervejara muito e se encantava soltando gracejos para as tutsis que passavam empinado as ancas e requebrando quadris cheios de vida.
Domitilla, matrona twa, não escasseava conselhos a ninguém e já alertara o apaixonado aldeão sobre o perigo de tamanho encanto por uma forasteira.

Que coisa mais feia, Tharcisse Mugabe! Você vive atrás daquela curandeira de Dr. Mike. Por que não torna à realidade e se arruma com uma twa? Um dia desses, aquele sujeito encherá seu bucho de balas, ou pagará a um hutu para fazer o serviço melhor em você!

Tharcisse Mugabe, enquanto se evadia do médico inglês, matutava.

E se a besta-fera a que a mãe de Dra. Isabelle se referiu for o próprio Dr. Mike, que vive ao lado dela, aproveitando-se de sua bondade?

Ele aligeirou os passos para se distanciar de inglês, que estava alcoolizado e desolado por toda a situação caótica da saúde no país, a qual se esgueirava do controle. Tharcisse Mugabe pôs sebo nas canelas e foi-se ter com suas dúvidas. No entanto, teve tempo de ouvir o médico, em pé, gritar-lhe, à beira do bar, agarrado em um fino tronco de grevílea, que servia de coluna para um terraço de teto de palha:
— Corra, twa covarde! Corra e vá se esconder debaixo da saia de Dra. Isabelle. Pois se há uma coisa neste país de que o Diabo gosta é de twa!
Dr. Mike soltou um riso fácil, qual diabo obreiro ao final do dia.
— Ah! Ah! Ah! Ah!



6 – O BARRO


Os twas, em tom de lamento, cantam a seguinte canção:

O barro está difícil
O barro não tem mais valor
O barro me dava carne e eu comia muitas vezes
Com outras coisas
O barro me dava o sorgo e eu podia beber cerveja de sorgo
O barro me dava o feijão e eu podia comer todo dia
Com muitas outras coisas
Deixe-me sozinho
Eu estou cansado do alto custo do barro
As xícaras, os pratos e as panelas de plástico chegaram

Em um dia qualquer, o Sr. Habimana foi à aldeota dos twas de Kigali, acompanhado de seguranças hutus e tutsis particulares que contratou no intuito de impor medo e respeito quando da sua chegada. Ele se encontrou com os velhos do lugar e com Mukono e Domitilla. Apresentou um documento e pediu que os twas assinassem-no, se soubessem, ou pusessem uma marca que os identificasse.
— Eu preciso utilizar a terra nos pântanos de Bugesera em conjunto com vocês.
Domitilla, que possuía muita influência na comunidade, sondou o Sr. Emmanuel Habimana.
— Por que o senhor quer usar as nossas terras?
— Preciso realizar alguns testes agronômicos com uma nova cultura.
— O que isso quer dizer?
— Vou pôr uma nova planta lá. Preciso de apenas um pedacinho de terra e não haverá prejuízo para vocês.
— Poderemos continuar coletando o nosso barro?
— Mas é claro que sim. Vocês poderão retirar todo o material de que precisam.
— Quanto nos pagará por aqueles charcos, Sr. Habimana?
— Não acho justo pôr apenas dinheiro neste negócio e, sendo assim, trouxe uma camioneta cheia de alimentos. Proponho trocá-los por um pedaço de pântano.
O Sr. Emmanuel Habimana era um hábil negociador e sabia que um povo tão exposto às agruras da fome preferia o alimento direto ao dinheiro intermediário. Então, ele ordenou que o motorista manobrasse o veículo até o centro do povoado e descarregasse as bananas, as laranjas, as batatas e o feijão. Ao verem fartura nunca antes presenciada na comunidade, as magras e vorazes crianças correram em direção às frutas e as mães brigaram entre si pelas sacas de feijão. Em questão de minutos, os produtos estavam espalhados pelas cabanas dos twas. Domitilla, temendo a reação do dono da carga, rogou que Mukono reouvesse os gêneros alimentícios da Fazenda BE.
— Faça-os parar, Mukono!
— Como, Domitilla?
— Não sei, mas dê um jeito nisso.
— Não vou tirar a comida da boca das crianças.
Apreensivos, os twas olhavam de relance, aguardando a reação do Sr. Habimana. Viram-se em uma situação delicada, pois não tinham como pagar uma camioneta cheia de frutas e legumes. O estancieiro, então, apresentou um contrato de compra das terras barrentas que eles se viram obrigados a chancelar. As frutas e legumes garantiram não mais que três dias do consumo da sua gente. Por não terem como quitar o prejuízo causado pelas crianças e mulheres da comunidade, avieram-se com o comprador, da forma como acharam possível. Foram ameaçados de prisão pelos hutus que escoltavam o rico tutsi e sucumbiram aos escritos em verba. Ser preso era um dos maiores temores dos twas em Ruanda, porque, se sofriam com a discriminação enquanto homens livres, na carceragem a situação tomava ares de desgraça total. Eram maltratados pelos guardas e pelos detentos, por serem twas, e quase sempre eram mortos. Seus paludes do lago Mugesera após os limites sul leste da Kigali Rural foram um presente de uma ONG dos Estados Unidos da América. No final de 1987, a organização não governamental levantou fundos e adquiriu um generoso pedaço de pantanal de onde os twas retiravam a argila necessária para a confecção dos seus potes. No Ruanda daqueles dias, um país tão carente de colinas para plantio, os pigmeus disporem de terra lavradia tão-somente para a extração de barro tornou-se uma regalia excessivamente grande.

Nos anos imediatamente anteriores a 1994, o Banco Africano de Desenvolvimento financiou uma grande quantidade de projetos agrícolas em Ruanda, com a intenção de minimizar o deficit de comida e melhorar as condições de vida da população rural. Mesmo assim, uma das características marcantes das fazendas em Ruanda é sua pouca dimensão territorial e, no presente caso, para acessar o crédito agrícola, o Sr. Habimana precisou demonstrar para a instituição financeira possuir terras livres com uma área maior que a FBE e com dimensões suficientes para viabilizar um projeto lucrativo. Então, ele optou pela drenagem e cultivo dos alagados, como forma de gerar um desempenho econômico capaz de arcar com o ônus do financiamento. Um estudo técnico feito por agrônomos do governo contratados por ele sugeriu

A incorporação das terras devolutas, onde os twas exercem atividade extratora e mineradora prejudicial ao meio ambiente.

Por meio do tráfico de influência e propina em gestões perante os órgãos da burocracia legal e do documento testemunhal conseguido no dia, ele pôde se apoderar das terras dos twas e, através de advogados, obteve um título de posse de terra.

Dos pântanos de onde os pigmeus retiravam, sem licença dos órgãos competentes, grande quantidade de argila, agredindo sistematicamente a natureza local!

Posteriormente à visita do Sr. Emmanuel Habimana à aldeia dos twas, Tharcisse Mugabe comentou o assunto com a médica americana.
— Dra. Isabelle, o maluco do Mukono e sua parceira Domitilla deram os nossos brejos para o Sr. Habimana utilizar em conjunto com a gente.
— Eu o conheço, Tharcisse. Ele é o patrão do namorado de Rose, Elizaphan. Vocês cederam o uso dos pantanais para ele de graça?
— Não, Dra. Isabelle, ele pagou honestamente pelo negócio.
— Quanto ele pagou para vocês?
— Ele nos deu comida. Um veículo cheio de frutas.
— Isto não me cheira bem! Veremos no que dá e, se ele criar caso, nós anularemos o negócio. Fique de olho e me informe, se houver algum problema.
— Não temos condições de repor a comida do Sr. Emmanuel Habimana, Dra. Isabelle.
— Você se refere a uma camioneta cheia de bananas? Deixe comigo que eu me entendo com o larápio.

* * * * *

Nos primeiros dias após o fechamento do negócio de venda das terras encharcadas de Bugesera ao cafeicultor, tudo correu bem, porém os twas começaram a ter dificuldade de acesso, pois foram barrados por funcionários da propriedade rural que realizavam medições no local. A situação se agravou após a visita de uns técnicos agrícolas do Banco Africano de Desenvolvimento, que foram avaliar as condições do terreno. O Sr. Habimana tinha condicionado o sucesso do seu negócio a um empréstimo bancário e a liberação do dinheiro dependia da aprovação do projeto agrícola apresentado pelo proprietário rural. De imediato, os fiscais do BAD condenaram a atividade extratora dos twas e se indignaram com a finalidade a que se destinava o barro coletado. Então, o negócio, que antes fora acelerado, afrouxou o passo.
— Nós não podemos compactuar com essa situação, Sr. Habimana. Não aprovaremos um projeto agrícola nestes alagadiços, enquanto um grupo de indivíduos retirarem material daqui para uma finalidade alheia ao exercício da agricultura. O senhor precisa nos demonstrar por A mais B que resolverá este problema.
— Nossa, meus amigos! Que mal há em uns míseros potes de barro que eles fazem?
— O problema, Sr. Emmanuel, é que não citou, em seu projeto, a existência desta atividade mineradora na mesma terra para onde serão canalizados os recursos do nosso banco.
Apesar de não se compadecer com a situação de miséria dos twas, o Sr. Emmanuel Habimana tentou sensibilizar os auditores litigantes do Banco Africano de Desenvolvimento.
— Não levem este detalhe em conta, rapazes. Esta argila que retiram deste charco não ofende em nada a produtividade destas minhas terras. Além do mais, eles são uns pobres coitados que não têm sequer onde caírem mortos.
— E nós com isso? Não estamos aqui para discutir questões sociais do seu país, visto que o nosso trabalho é eminentemente técnico. Não nos leve a mal e entenda esta posição.
Emmanuel Habimana, apesar de ameaçado nos seus interesses comerciais, não confrontou os fiscais, mas quis fazer valer seu melhor argumento nas rodas comerciais de que participava em Ruanda: a propina.
— Nós sabemos que, por intermédio de umas taxas extras, poderemos chegar a um acordo. Afinal, como os senhores próprios dizem, somos todos técnicos.
A carta atirada à mesa pelo fazendeiro pareceu ter sido uma escolha infeliz, dado que os inspetores do BAD se indignaram com a tentativa de suborno e foram ríspidos na resposta, mostrando que não seria fácil uma concórdia por aquele rumo.
— Não entendemos bem ou o quer nos comprar, Sr. Emmanuel?
O produtor rural tutsi, percebendo a maneira decisiva com que os funcionários do Banco Africano de Desenvolvimento rejeitaram sua proposta de acerto financeiro para uma questão técnica, recuou.
— Não, meus amigos, de modo algum. Conheço a lisura das operações da instituição que representam. Apenas solicitava que, como profissionais do ramo, me apresentassem uma solução viável para este impasse. Não podemos parar esta nação por causa de reles twas. Eu sou um dos empresários que movem este país e não posso ser freado por nada neste mundo, dado que meus negócios são o sangue que corre nas veias da economia.
— Nós compreendemos a situação, Sr. Emmanuel. Nossa instituição possui compromissos com a problemática social da África, pois somos signatários de vários acordos multinacionais neste sentido, porém existe uma ilegalidade e um jeito empírico e ultrapassado de se extrair o barro deste lodaçal. Lamentavelmente, não podemos aceitar essa situação e não vamos deixar de apontá-la em nosso relatório à matriz, quer isso o agrade ou não.
— Está bem! Está bem! Eu já concordei com isso. O que os senhores me aconselham a fazer?
— Apresente um adendo à sua proposta.
— Como assim?
— Estamos falando de um termo aditivo ao projeto que legalize e viabilize a extração de barro pelos twas.
— Deste pouquinho que eles precisam?
— Por pouco que seja, Sr. Emmanuel Habimana. Infelizmente, a lei não observa as quantidades.
— Está certo! Que façamos outro projeto. Quanto me cobrarão por este serviço?
— Nós? Não seremos nós a fazer esse trabalho. Porém, podemos indicar alguém que lhe apresente um anteprojeto.
— De acordo. Façam como julgarem conveniente.
— Eles chegarão aqui na semana que vem, quando lhe entregarão um orçamento preliminar.
— Orçamento preliminar? Semana que vem? Não chove tempo no meu roçado; chove água! Eles não poderiam me entregar essa papelada amanhã em Gitarama?
— Quê? Não está nos entendendo bem, Sr. Emmanuel. Este pessoal mora na África do Sul e são técnicos renomados e creditados pelo Banco Africano de Desenvolvimento. Não pode ser qualquer pessoa a realizar este serviço. Hão de ficar hospedados em Kigali ou aqui mesmo em Bugesera por, pelo menos, seis meses ou mais.
— Pobre de mim! Isto tudo a minhas expensas? Vocês estão loucos?
— Sr. Emmanuel, elaborar um relatório de impacto ambiental leva tempo, especialmente, em um ecossistema sensível como um pantanal. Aqui há papiros, bambus e palmeiras em profusão. Precisarão acompanhar e medir as estações das águas, catalogar animais e plantas e suas relações com as enchentes...
O estancieiro tutsi não esperou que os fiscais do Banco Africano de Desenvolvimento terminassem sua explicação. Cortou a conversa pelo meio e lhes falou:
— Parem, parem, por favor! Não sou o homem mais rico do mundo. Não planto petróleo, ouro ou diamantes; cultivo café.
— Pois então...
— Qual é o plano B para este impasse?
Os ímprobos auditores chegaram ao ponto da conversa para onde a tinham manejado. Era o momento exato de aplicarem o golpe fatal no contratante ruandês. Propuseram-lhe:
— O senhor terá de tomar duas atitudes, para que possamos aprovar a liberação do empréstimo, Sr. Habimana: uma para apagar os erros do passado e outra para prevenir o mal no futuro.
— Quais são?
— Para garantir que não mais haja extração de argila nos brejos de Bugesera, não mais poderemos nos permitir ver twa algum aqui dentro!
— Está certo, está certo. Dói-me, mas farei isso. Vou expulsar aquela gente deste lugar. E qual é a outra condição relativa ao passado?
— Precisamos passar uma esponja na agressão que este pântano já sofreu por parte dos malvados pigmeus, fazendo vista grossa a isso tudo que se passou.
— Não sejam exagerados. Eles somente retiraram um pouquinho de lama deste lugar, pois não fabricam casas de barro, mas apenas simples potes que vendem no mercado de Kigali.
— Nós não pensamos assim e deve-nos convencer a não citarmos no nosso relatório à divisão de investimentos do BAD o extravio sistemático deste recurso natural.
— O que acontecerá com o nosso contrato se os senhores fizerem isto?
— Nada de mais, porém terá de repor a terra retirada, coletando igual quantidade de outra fonte legal de extração.
— Pois podem citar o que quiserem! Com duas viagens de caminhão de Gitarama, reponho o barro retirado e resolvo esse caso.
— Positivo, Sr. Habimana. Estamos pelo que seja do seu agrado. Entretanto, lembre-se de que haverá um atraso de no mínimo um a dois anos para que o empréstimo, depois de aprovado, seja liberado para sua conta bancária.
— Dois anos? Por que esse tempo todo?
— É o tempo necessário para que o ecossistema volte ao normal, após a reposição do barro retirado daqui.
— Sejamos razoáveis e práticos, por favor. O que haverei de fazer para passarmos uma esponja no passado? — Referiu-se à tal vista grossa antes citada pelos técnicos do BAD.
— Finalmente estamos na mesma página! Bem, Sr. Emmanuel, neste caso, o senhor deverá arcar com as taxas extras às quais se referiu no início da nossa conversa, em valores justos para todos nós.
O rico estancieiro viu-se obrigado a pagar uma gorda propina aos fiscais do Banco Africano de Desenvolvimento. Somente assim, pôde usufruir seus charcos comprados aos twas por uma camioneta cheia de bananas com tantos vícios de direito. De acordo com o contrariado Emmanuel Habimana:

Ele ficou mais pobre, por causa dos malditos twas de Kigali que retiravam o precioso barro das terras pantanosas de Bugesera, as quais eram tão suas quanto a Fazenda BE de Gitarama!
Ele haveria que tomar uma providência imediata contra os ladrões dos recursos minerais de sua propriedade e daria uma lição nos vadios twas que não esqueceriam jamais!

Por outro lado, ele percebia que os negócios em Ruanda tornavam-se abusivos nos anos de 1993 e 1994. O custeio da fazenda estava sufocante. Na ocasião, falou com seu capataz tutsi, François Mukakalisa, sobre a despótica espoliação de mão de obra assalariada na FBE.
— Meu fiel amigo François Mukakalisa, a mercancia está péssima em Ruanda neste limiar de ano.
— Como pode pensar assim, patrão? As glebas estão férteis e as colinas abundam de café. Os silos estão abarrotados de sacas e os caminhões não param de entrar e sair da Fazenda BE.
— Há algo de sinistro com a produção.
— Como assim, senhor?
— Os custos estão indo para as alturas.
— Não pode ser! Diminuí o soldo dos empregados, como me recomendou. Quem não aceitou de boa vontade foi expulso sem direito a nada.
— Eu sei que você é um bom feitor e comanda essa gente regularmente. Será um bom administrador de fazenda, por certo.
— Essa tarefa deixo para o seu filho, que puxou ao pai. Alguém o importuna?
— Não, Mukakalisa, ninguém em especial me incomoda no momento. São os tratos mercantis que estão muito viciados. A cada jornada, tenho de destinar mais dinheiro para comprar a simpatia dos hutus. Esta guerra tola perde este povo e deixa Ruanda em bancarrota com uma geração de parasitas preguiçosos. Hoje é difícil encontrar um jovem que saiba manusear uma enxada; entretanto, em cada esquina esbarramos num bando deles que entendem de armas.
— São crises passageiras, estas a que se refere. Havemos de ter paciência que há de terminar essa peleja entre a Frente Patriótica Ruandesa e o Exército Hutu.
— Conto que esteja certo, François, pois cada vez mais eu e você trabalhamos para sustentar a gula dos hutus que comandam essa matança da nossa estirpe.

* * * * *

Desenvolvi um método de acompanhamento da condição de saúde das crianças twas de Kigali, mesmo sem poder ir ao vilarejo amiúde, pois já não aguentava a implicância de Dr. Mike:

Deixe os twas viverem a vida deles em paz, Dra. Isabelle!

Comprei uma pequena mas adequada balança de segunda mão de um feirante local e a dei a Tharcisse Mugabe para que ele, quinzenalmente, pesasse as crianças da vila e ficasse atento ao comportamento delas. O desenvolto twa fez uma tabelinha em uma folha de papel com frente e verso onde anotou uma identificação para cada pequerrucho nas linhas e os dias nas colunas, certinho. Uma vez por mês, ele vinha à minha residência com a atualização mais recente da tabela. Certa vez, notei uma queda generalizada no peso das crianças e, curiosa com o fato, comentei para o twa.
— Você se enganou em alguma coisa desta vez, Tharcisse Mugabe, pois é improvável que todas as crianças tenham perdido peso ao mesmo tempo e algumas de forma acentuada.
— Não há erro algum, Dra. Isabelle.
Ao perceber a segurança do amigo, imaginei que algum surto de doença oportunista tinha se apoderado das crianças twas da comunidade de Kigali.
— Como não? O que ocorreria a estas crianças para perderem tanto peso? Estão todas doentes? E por que você não anotou nada destas duas aqui?
— As crianças não estão doentes e as duas que faltam morreram esta semana, uma delas ontem à noite.
Assustei-me, imaginado que a provável virose era grave ao ponto de ter matado duas crianças.
— Deus do céu! Morreram? Qual o motivo desta fatalidade?
— Todos sabem de que morreram.
— De que faleceram, afinal?
Com a maior naturalidade do mundo, como se estivesse me dizendo algo comum e corriqueiro para os pigmeus, ele me falou:
— Elas morreram de fome.
— Quê! De fome? Jesus, twa!  Elas estavam quase gordinhas faz um mês.
Fiquei pasma e ao ouvir a informação bombástica, sentei-me em uma cadeira. Algo acontecera desde a última vez que eu fora à comuna pigmeia. O twa precisava me dar explicações sobre a morte de dois inocentes anjinhos nascidos recentemente. Perguntei:
— Por que elas passaram por tamanha necessidade?
— Nós não mais fabricamos os potes de barro, Dra. Isabelle, e quase todos estão vivendo da mendicância pelas ruas de Kigali, mas, infelizmente, não há esmolas suficientes nestes tempos. Além do que, os hutus da Interahamwe estão perseguindo os twas pedintes, espancando e levando presos alguns de nós com a alegação de vadiagem. Os que temem pela vida e evitam à mendigação não encontram o que dar para os filhos comerem. Então, os doentes e mais fracos não resistem. Eu estou bem por causa do meu jardim. Incluí outros twas no meu negócio, mas não tenho flores para todos venderem e não existe tanta gente querendo este produto. Mukono é outro que está tranquilo, pois se alimenta da caça perigosa e ganha dinheiro de Padre Jumpe. A senhora pode nos ajudar?
— É claro que vou ajudar vocês, Tharcisse Mugabe. Vamos hoje mesmo ao povoado. Diga-me uma coisa: por que vocês pararam de fabricar cerâmica?
— Não temos de onde coletar barro, Dra. Isabelle.
— E os paludes de Bugesera? Secaram?
— Para nós, batwa, sim! Esqueceu de que eles não mais nos pertencem?
— Sim, eu sei disso, porém existe um acordo com o Sr. Habimana para que vocês continuem a retirar um pouquinho da argila do local.
— Não existe acordo faz pelo menos um mês e meio. Quem entra nos atoleiros é recebido à bala e pouca gente tem coragem de ir apanhar material. Só vejo uma solução, Dra. Isabelle.
— Qual?
— Precisamos falar com o Sr. Habimana porque ele tem de nos devolver o barro.
Peguei a motocicleta e fui com Tharcisse Mugabe à vila dos twas. A situação deles era crítica e se preparavam para ir buscar argila nos brejos de Bugesera, em um claro repto à determinação do poderoso fazendeiro. Eu não poderia pedir àquela gente que não se arriscasse, pois a vida deles também estaria em jogo, se não conseguissem os meios para a subsistência da comunidade.

* * * * *

Durante o dia todo, Isabelle e o twa procuram Dr. Mike, porém ele não estava na Capital. Saíra em mais uma das suas misteriosas viagens. Quando foi encontrado, no seu retorno, estava no hotel. O médico desceu do quarto e foi ao encontro de Tharcisse Mugabe que chegara à porta do Mil Colinas e fora impedido de entrar pelos seguranças do estabelecimento.
— O que houve, twa? Aconteceu algo à Dra. Isabelle?

* * * * *

Atendendo ao recado dado por Tharcisse, Dr. Mike veio à minha residência. Ao chegar, olhou-me penetrantemente, averiguando se algo inusitado ou ruim me levara a mandar-lhe uma mensagem por meio do twa. Após tatear-me, constatou que tudo estava bem comigo, fato que atiçou sua curiosidade. Eu, na oportunidade, conversei com ele, especialmente, sobre os Estados Unidos e a Inglaterra. Relatamos um para o outro as nossas rotinas nos países de origem. Ao alcançarmos alta hora, noite adentro, a conversa ficou picante, fazendo-o me apresentar toda uma galantaria de frases de efeito e conteúdo sedutor. Acreditava que eu não percebia o laço que me atirava, a fim de ter-me em seus braços.

Será que Dr. Mike não percebe que eu não sou uma de suas amigas tutsis?

Ao passo em que o canto de sereia do inglês me envolvia, deixava-me seduzir por ele e fiz de tudo para mantê-lo à vontade. Sabia que, se lhe desse o que aparentava querer de mim, não me negaria o obséquio de visitar a Fazenda Boa Esperança em Gitarama. De outra forma, seria uma tarefa árdua convencê-lo a fazer algo contra seus princípios em favor de Tharcisse Mugabe ou dos outros twas. Ele considerava os pigmeus fadados à extinção e absorção pelas outras etnias.
— Os twas estão vivendo o final da sua jornada, Dra. Isabelle. Creia nisso e pare de lutar contra a evolução! A seleção natural das espécies é conhecida desde Charles Darwin e espanta-me constatar que uma mulher da ciência não aceite esta verdade.
— Não seja fatalista e não os trate como se fossem animais irracionais, já que lidamos com decisões pensadas e não instintos.
— Os twas que se salvarão da extinção serão os que se misturarem aos tutsis e hutus.
— Não me faça rir. Não conheço um casamento sequer entre um twa e não twa.
— Quem está falando em casório?
— Não?
— Claro que não. A salvação da espécie híbrida e a propagação dos genes dos twas serão alcançadas por meio dos estupros dos hutus contra as pobres pigmeias.
— Às vezes, o acho monstruoso, Dr. Mike! Se não confia ou não tem fé no Divino, pelo menos, tema a possibilidade de um encontro futuro com Deus.
— Os estupros dos hutus têm um propósito histórico, social e antropológico para os pigmeus neste país. Ah! Ah! Ah! Ah!
Convidei Dr. Mike para cearmos e tomarmos um vinho francês que recebera da minha mãe pelos correios no mês anterior. À noite, deitei-me com ele e realizamos muitas das nossas fantasias. Em troca, apresentei-lhe a amarga fatura dos meus serviços de cortesã americana. Se, no momento, eu lhe pedisse para enfrentar, sozinho, em campo aberto, todo o exército turco, ele o faria por mim. Assim, como haveria de me negar o obséquio de contestar os interesses de um mal-humorado estancieiro tutsi que não gostava de twa?
Ao enxergar de manhã aquele homem ressacado recusar o desjejum, sair reclamando de dores de cabeça e apregoando arrependimento, com o semblante mal dormido e em completo desalinho, ri em surdina, deleitando-me com a cena hilária. Ele fazia sucesso com as tutsis, no entanto, nada entendia das americanas. O lorde inglês teria problemas, se morasse em Nova Iorque. Antes de sair em direção ao hospital, falou-me que providenciaria, ao longo do dia, um modo discreto e socialmente aceitável de ajustarmos o assunto com o cafeicultor Emmanuel Habimana. Percebi que ele ficara possesso comigo, porém não podia fazer nada quanto a isso. Temi que descarregasse sua ira em Tharcisse Mugabe e foi o que exatamente se deu, logo depois, à tarde, quando o encontrou negociando seus potes de violetas-africanas na feira local. Contaram-me que o médico inglês estava possuído pelo capeta, quando pegou o twa e deu-lhe uns cascudos sonoros. Assentou-lhe bofetes em plena praça pública e teve de ser contido por transeuntes para não matar o pobre-diabo. Assim que se desvencilhou do inglês, Tharcisse Mugabe fugiu tão rápido que nem mesmo um guepardo faminto o alcançaria em uma savana capinada. Dr. Mike o perseguiu de Land Rover desenfreadamente a berrar por toda Kigali. Contudo o fujão correu tanto que só parou no cafundó de judas em segurança. O médico ficou a resmungar justificativas para perplexos e desentendidos ouvintes.

Tharcisse Mugabe era um pigmeu metido a bonzinho, mas, na realidade, era sonso e espertalhão. Um santo do pau oco dissimulado, era isso que ele era. Este sim era o verdadeiro perigo até mais que Mukono. O maldito twa estava enchendo de minhocas a cabeça de Dra. Isabelle!

Sem ter alternativas, pois não viu possibilidade de desistir da visita à Fazenda BE sem magoar a namorada, Dr. Mike procurou seus amigos na embaixada britânica e, por intermédio deles, marcou uma reunião com o Sr. Emmanuel Habimana em Gitarama. Ao saber por terceiros que médicos pleiteavam terras para os twas, o empresário rural não quisera recebê-los. Diante da inquebrantável insistência do Embaixador Britânico, aceitou o encontro, contudo, foi categórico acerca da impossibilidade de Tharcisse Mugabe pôr os pés em sua propriedade:

Pois lá não era lugar para gente preguiçosa ou maconheiros!

Em uma quinta-feira, à tarde, após o almoço, na picape da Cruz Vermelha, eu e Dr. Mike pegamos o caminho das estradas de terra vermelha nos arredores de Kigali. Larguei-me à experiência de ver a cidade de um ângulo que até então desconhecia. Mergulháramos no campesinato ruandês. Em meio a pessoas atarefadas, vimos muitos pássaros: íbis, nectarínias, rouxinóis, coucais, turacos e tecelões. Pequenos animais cruzavam o nosso caminho. Eram mamíferos roedores. A natureza foi grata com Ruanda, pois a beleza estava espraiada por todos os cantos para onde olhássemos. Saboreávamos a experiência campeira ao atravessarmos arroios de diáfanas águas e pequenas corredeiras afluentes do Rio Nyabarongo.
— Veja aquele belo casal de pássaros, Dra. Isabelle.
Dr. Mike parou a Land Rover e falou-me baixinho, quase os sussurros, para não atrapalhar o acasalamento dos passarinhos.
— Onde, Dr. Mike?
— Lá no podocarpo, à nossa frente, à direita. São turacos iniciando o ritual de acomodação ao amor.
— São lindos!
— O que acha de colocarmos uma armadilha logo ali para levarmos um deles em uma gaiola? Quando nós passarmos por aqui na volta, pode estar capturado.
— Ficou louco? E nós vamos tirar a liberdade dos coitadinhos? Nem pensar!
— Ah! Ah! Ah! — Dr. Mike sorriu.
Acredito que o médico tenha me proposto isto por pura gozação, pois conhecia minha posição em favor da inviolabilidade da natureza que resta no mundo e que não compactuo com caçadas, exceto para a própria subsistência. Ele ligou o veículo e continuamos nossa jornada pela Kigali Rural, pois tinha escolhido um percurso que nos mantinha em evidente contato com a natureza. Nós dois precisávamos de uma sensação daquelas no país tumultuado.
Ao chegarmos ao portão frontal da Fazenda Boa Esperança, um calafrio tomou conta de mim. Senti-me como um cavaleiro medieval que adentra um enorme castelo repleto de perigo com o propósito de salvar a donzela aprisionada pelo cruel lorde malfeitor da época. Pareceu-me que eu ia para uma audiência com um dos antigos mwamis, reis tutsis, e não com um fazendeiro de Gitarama. A importância da questão me fazia vacilar. As histórias que meu pai me contara com um livro às mãos, à beira de minha cama, ao longo da minha infância, apareceram na minha mente como uma flor que desabrocha após um longo período de estiagem. Aquele lugar era limpo e encantado. Nada lembrava Ruanda dos córregos, das favelas e da pobreza que eu conhecera até então. Ali a fartura possuía um desempenho monocromático: o verde tomava conta de tudo. Quanto mais penetrava na FBE e me anexava àquela paisagem rural, com muitas árvores frutíferas, mais acudia à memória a lembrança da minha mãe de avental na cozinha, cedo de manhã, chamando-me insistentemente para desjejuar.

Isabelle, apresse-se, menina! Venha logo comer ou você perderá a hora da sua escola!

Um cheiro fortíssimo de café fresco tomava conta de todo o lugar. Entrou pelas minhas narinas e pareceu-me que foi parar dentro do meu útero de tão forte que era. De imediato, percebi por que Rose não suportava me ver saborear um expresso para espantar o sono nas tardes cálidas e úmidas, após almoçarmos juntas em minha casa nos anuviados domingos. Sem complacência me encaminhava à sesta:

Meu Deus, Dra. Isabelle! Tire um pequeno cochilo e não vá contra a sua natureza. Eu cuido de tudo para a senhora. Não tome tanto café, pois lhe faz mal!

Morar na Fazenda Boa Esperança era o mesmo que enfiar a cabeça dentro de uma saca de café torrado, abrir os pulmões e respirar bem fundo. Ali estava um paraíso sonhado por baristas viciados.
Percebi que havia outras lavouras secundárias como feijão, arroz e milho, porém a principal cultura do local era o onipresente café que reverdecia os cerros. Ao largo, pastoreado por ninguém, um razoável rebanho de chifrudo gado ankole, que servia para o consumo próprio e escambo nas baixas estações, ali estava a alimentar-se por si só em um esverdeado prado. Por trás do rebanho, alteavam-se os morros cortados em curvas de níveis para acondicionarem fieiras de pés de café.
Fomos recebidos por François Mukakalisa, capataz tutsi, que nos disse para sairmos do veículo. Pediu-nos que lhe entregássemos a chave de ignição da camioneta. Ele a passou para outro empregado rural que levou o automóvel para a garagem local. A residência principal onde moravam os habimanas era larga, entretanto, não luxuosa. Um homem, para ter juntado tanto dinheiro ao longo da vida, não poderia ter o perfil de um gastador de recursos financeiros. O Sr. Emmanuel era comedido em seus dispêndios.
Entramos e fomos recebidos pela esposa do Sr. Emmanuel, uma senhora hutu de aproximadamente 50 anos com os cabelos brancos e descuidados que se chamava Béatha Habimana. Ela nos acomodou em um sofá simples, amplo e discreto assim como todo o mobiliário do lugar. Sequer ornatos havia nas paredes daquela sala. Se não fossem pelas fotos dos membros da família em uma prateleira duma estante e por uns galhos de roseiras com belas rosas vermelhas em um jarro de barro twa, a sala de estar de alfaias rústicas poderia ser confundida com um apenso de um escritório qualquer. Um rádio antigo sintonizado na Mil Colinas com seus programas racistas incutindo ódio contra os tutsis chamou-nos a atenção para as palavras de ira racial e radicalismo sectário, que escutamos, enquanto aguardávamos o cafeicultor nos receber.
Béatha Habimana nos falou:
— Boa tarde, meus amigos. — ela possuía a voz meiga e a fisionomia cansada de quem trabalha muito por longo tempo. — Meu nome é Béatha Habimana. Sentem-se aí e aguardem meu esposo. Ele está supervisionando o embarque de um lote de café vendido para a Bélgica. Já ouvi falar da senhora, Dra. Isabelle.
— Sério? Meu nome chegou em Gitarama antes de mim?
— Com certeza, sim. De vez em quando, ouço alguma notícia na Mil Colinas ou leio algo no jornal.
— Boas ou más notícias, Sra. Béatha Habimana?
— Ah! Ah! Ah! Eles divulgam um pouco de tudo. A senhora é um caso à parte, Dra. Isabelle, e toda mulher sofredora lhe tem apreço e inveja a sua liberdade de expressão. Percebo que é uma mulher do mundo moderno, portanto, não se importe com os comentários maliciosos. A maioria das mulheres deste país ainda está no tempo em que o nosso lugar era a cozinha. É por isto que controvérsias a respeito das suas atitudes emergem do seio dessa gente ignorante. Se eu tivesse a sua idade, estaria do seu lado atirando em pecadores, por uma razão ou outra também. Eu adorei a reportagem sobre como deu uma surra em três hutus da Interahamwe. Ah! Ah! Ah! E é muito valente.
— Não dei sova em ninguém. Eles ficaram constrangidos de me bater em praça pública, e pouco se empenharam na ocasião.
— Espero que vocês consigam aquilo que vêm procurar aqui. Eu falei para Emmanuel que deixe esta história de terra de pigmeu para lá. Não precisamos dela. Eu o alertei, além disto, que maltratar twa dá azar!
— Obrigada, Sra. Béatha Habimana. Conto que seu marido seja tão compreensivo quanto a senhora. — Ela me esclareceu alguns pormenores de um contrato informal de arrendamento de terras entre o proprietário rural e os twas.
— Lamentavelmente, não conte com isso. Emmanuel é um homem de cabeça dura, porém no final, pode deixar que o convenço a atendê-la. Sei que é uma boa pessoa que faz muito pelos pobres daqui. Somente não entendo por que defende tanto esses boas-vidas twas. Vivem vagabundeando por aí. Não se importe com eles. O próprio Emmanuel tentou ajudá-los empregando-os aqui, contudo é sempre a mesma história: não aprendem nada, pois são lentos na memorização. Só têm serventia para passear com cães e espantar pássaros. Em caso de necessidade, podem ser usados como moleques de recado e, mesmo assim, se não for para transportar notícia importante. Nós ademais tentamos trabalhar de meia com alguns deles, arrendando umas pequenas sesmarias de nossas colinas. O que produzissem dividiríamos meio a meio. Foi um desastre! Não conseguiram ficar com as roças, pois muitos tiveram suas terras tomadas por tutsis ou hutus. Não têm força para manter propriedade. Um deles trocou seu lote por umas garrafas de pinga. Emmanuel teve dificuldade para reaver os terrenos das mãos de terceiros. Houve mortes e ele teve de andar escoltado por seguranças armados, por um bom tempo.
— Nós os estereotipamos, Sra. Béatha Habimana. — expliquei-lhe que o povo fabulava muita coisa má sobre eles.
A esposa do Sr. Emmanuel não entendeu ou não se interessou pela minha opinião e, por isso, mudou de conversa.
— É mesmo verdade que o espírito da sua mãe apareceu para a senhora? — Tateou-me.
— De certa forma, sim.
Dr. Mike não gostou do assunto esotérico e saiu para o avarandado contíguo. Foi observar a rotina agrária da FBE, visto que era uma oportunidade ímpar de presenciar a faina do lugar. Encantou-se com o ruge-ruge dos trabalhos na ceifa do café.
— Eu queria que minha mãe aparecesse para mim, Dra. Isabelle. Como conseguiu estabelecer um contato com um ser do além?
Fiquei sem saber a resposta que pudesse dar àquela pergunta singular. Dr. Mike que via, sabia e ouvia tudo, respondeu do terraço.
— Sra. Béatha Habimana, procure um twa de Kigali chamado Mukono e lhe peça um gole de chá! Ah! Ah! Ah! Ah!
— O quê, senhor?
Eu falei para a carola mulher:
— Não ligue para ele, pois é um desencaminhado que zomba de nós. É um pagão sem sorte e a única certeza que leva da vida é que irá se queimar na pedra do inferno ao morrer.
Dr. Mike continuava a soltar largas gargalhadas.
— Ah! Ah! Ah! Ah!
A Sra. Béatha Habimana fez um sinal da cruz e acendeu uma pequena vela meio gasta numa peanha de cimento aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, na tentativa de imunizar seu lar contra a carga pecaminosa que trazia Dr. Mike dentro de si. Falei-lhe:
— Ora bolas, Dr. Mike! Deixe-nos em paz e pare com essa pilhéria. Não há nenhuma tutsi de pernas grossas passando por aí?
A Sra. Béatha Habimana respondeu-nos:
— Temos sim uma tutsi formosa neste cantão. Ela é uma mocetona de nome Rose.
— Nós a conhecemos. Rose é minha melhor amiga em Ruanda e é enfermeira no Centro Hospitalar de Kigali. Quase esqueci que ela mora neste lugar. Ela está aqui?
— Ela foi a Gitarama e logo retornará. Todavia não é livre, pois namora um hutu feioso chamado Elizaphan.
Eu ri do comentário.
— Ah! Ah! Ah! Acho Elizaphan simpático.
— Pois sim! Não seja tão gentil. Percebe-se facilmente que aquela menina linda merece coisa melhor.
Esperamos o Sr. Emmanuel Habimana por cerca de uma hora e meia na companhia da simpática senhora. Dr. Mike estava disposto a desistir da empreitada ou marcar outra ocasião para a visita, porém foi desestimulado por mim. Ele dizia que eu era irredutível e, quando pretendia conseguir algo para mim, não arrefecia diante de nada.
O cafeicultor, Emmanuel Habimana, entrou na sala e me olhou penetrantemente, de forma desafiadora, como se quisesse me dizer:

Como você ousa vir à minha casa contrariar os meus interesses comerciais?

— Boa tarde, Dr. Mike e Dra. Isabelle, desculpem-me a demora. A cada dia, esta fazenda me apresenta diferentes desafios. É uma honra receber pessoas tão ilustres em minha humilde residência, pois acompanho o trabalho dos senhores faz algum tempo e sei que Ruanda só tem a agradecer os serviços que prestam.
Eu lhe respondi:
— Sabemos que é um homem ocupado e, durante este tempo, desfrutamos da companhia da sua adorada esposa. Há exagero em suas observações, pois se existem trabalhos na área médica em Ruanda, alguém deve assumi-los e não há dificuldades para se encontrar quem os faça.
— Minha mulher, a despeito de não a conhecer bem, admira-a muito, Dra. Isabelle. Custa-me crer como não lhe tenha oferecido um emprego de administradora desta empresa, durante a conversa entre vocês.
— Meus afazeres são distintos do plantio ou criatório, entretanto, seria um prazer trabalhar ao seu lado.
— Pois é, até ontem, antes de falarem da sua visita a esta fazenda, eu juraria que o negócio da Cruz Vermelha se limitasse aos casos de saúde.
— Por coincidência, graves assuntos de saúde me trazem aqui.
— Como assim?
— Venho lhe comunicar a morte de duas crianças twas da comunidade de Kigali.
— Por que me repassa esse fato em vez de encaminhá-lo ao governo e seu serviço funerário na capital?
— Porque morreram de subnutrição.
— É uma tristeza o que acontece neste país. Poucos como eu trabalham para gerar alimentos para tantos parasitas que nada fazem além de pegar de espingardas e facões. A pobreza deste país, por certo, matou esses seus amigos. O que quer de mim?
— Que permita o acesso dos twas aos pântanos para que possam retirar a argila de que tanto necessitam, como lhes prometeu que faria.
O estancieiro sabia perfeitamente o motivo da visita. Ele conhecia o nosso interesse de que meus amigos twas continuassem a ter acesso ao suprimento de barro diretamente dos paludes de Bugesera de que ele agora dispunha e que adquirira por meios pouco éticos.
— Eu realmente faria isso, Dra. Isabelle, e não fui eu quem os proibi de entrar.
— Então quem foi?
— Os órgãos de controle ambiental e o Banco Africano de Desenvolvimento, que financia meu projeto no pantanal. Eles afirmam que a extração de terra daquele lugar é ilegal. Não pense mal de mim ou acredite que nós empresários ruandeses sejamos ingratos.
— Os Twas, em boa parte, dependem da fabricação de cerâmica para sobreviver.
— Eu sei disso. Por sinal, eu uso aqui na fazenda os utensílios fabricados por eles. São de boa qualidade, contudo a farta oferta de vasilhames de plástico, a baixo preço, inviabiliza a aquisição dos seus potes. Sendo assim, melhor seria que procurassem um novo ramo de atividade, pois este atual está fadado ao fracasso. Sei do interesse dos senhores no caso, entretanto, nada posso fazer por aqueles twas.
Curiosa acerca do porquê de o Sr. Habimana tanto querer apoderar-se das terras dos pigmeus, perguntei-lhe:
— O que existe de especial naquelas glebas que tanto o atrai? — Ele me disse:
— Não têm nada incomum. Vou drenar aqueles encharcados para iniciar uma nova plantação.
— O que plantará ali? Bananas ou café?
— Vou iniciar um ramo novo e lucrativo. Vou plantar patchuli.
— O que é isso?
Ele me respondeu:
— Patchuli é uma planta de onde retiramos um óleo muito usado nas indústrias de cosméticos. Do seu sumo é extraída uma atrativa fragrância ideal para se fazer perfumes. — O produtor rural acreditava que a cultura se adaptaria bem ao ecossistema palustre de Bugesera.
O Sr. Emmanuel Habimana nos levou aos fundos da sua casa onde plantara algumas mudas de patchuli. As plantinhas me pareceram algum tipo destas verduras folhadas que colocamos nas saladas. Elas estavam perfiladas em linha em um canteiro experimental cuidadosamente manutenido. Eu quase não acreditei no que via à minha frente. Aquele homem condenava, talvez à morte, por falta de comida, um bom número de seres humanos, para plantar seu perfume supérfluo. Foi muito para mim e lhe falei rispidamente, sendo depois repreendida por Dr. Mike.
— Deveria se envergonhar, Sr. Emmanuel! Como pôde tomar os terrenos dos twas para plantar perfume?
— Esta nova cultura levará esta fazenda para o mercado internacional. Tenho de fomentar minhas terras.

* * * * *

O fazendeiro cuidava do pequeno canteiro como se fosse este uma criança que tinha adotado. Por conseguinte, era compreensível, porque fazia tanta questão de pôr em prática sua nova empreitada. O interesse dele em plantar patchuli decorria de necessidades financeiras em tempos de exceção. Era uma aposta em dias melhores.
— Deve algo àqueles twas, Sr. Emmanuel Habimana!
O estancieiro percebeu que Isabelle era uma dura negociadora que estava decidida a lutar por interesses que se confrontavam com os dele. Ele a avaliou e percebeu que não deveria desprezar sua capacidade de ela lhe causar algum prejuízo econômico ou político em Ruanda. Lamentou não ter sabido de antemão que, ao se meter em negociações com os twas, iria envolvê-la no caso. Não sabia o que fazer com ela, portanto tentou ganhar algum tempo, dando-lhe algum alento. Depois analisaria como se posicionar diante dela e, sobretudo, de Dr. Mike. O Sr. Habimana sabia que o inglês era um homem de prestígio entre os governantes hutus, por isto, deveria agir com cautela.

* * * * *

— Hoje, tive uma dura jornada de trabalho, Dra. Isabelle, e preciso descansar um pouco. Não me sinto bem, contrariando uma jovem tão esforçada como a senhorita. Vamos nos dar um tempo e chegarmos a um acordo preliminar.
— O que nos propõe?
— Dar-lhe-ei um prazo de seis meses para a senhora e seus twas continuarem a retirar o barro dos meus charcos, e me entenderei com os acionistas deste projeto. Após este período, se ainda não os tiver alojado em outro local longe das minhas glebas, retornaremos ao assunto.
O prazo de seis meses de liberação do acesso dos twas à matéria-prima, que o Sr. Emmanuel Habimana nos oferecia, não era exatamente a melhor opção, entretanto, Dr. Mike me fez enxergar que era, dentro das atuais circunstâncias, o justo ou o que de melhor poderíamos conseguir. Para ele a proposta era melhor do que buscar a lenta justiça dos tribunais, visto que os pigmeus necessitavam de ajuda imediata. Desta maneira, acertamos com o cafeicultor, da forma como estabelecera. Se não era uma solução para o caso, pelo menos, dava-me um alento para pensar em alternativas ao artesanato.

* * * * *

O Sr. Emmanuel Habimana era um homem sem escrúpulos, quando o assunto era negócio. Prometeu o que não queria e tampouco pretendia cumprir no futuro. Ele não poderia adiar o início do plantio de patchuli sequer por uma semana, que dirá por seis meses. Todavia não achou oportuno confrontar abertamente dois ilustres forasteiros a serviço valioso de Ruanda. Ele não acreditava que o poder hutu fosse contra ele em uma contenda contra insignificantes twas porque os pequenos aldeões que utilizavam seu barro eram indigentes sem uma única vírgula em lei que os protegesse. No entanto, ele temia o poder de influência dos médicos.

* * * * *

Ao iniciarmos o caminho de saída da quinta, eu e Dr. Mike, aliviados e com a sensação de missão cumprida, conversávamos descontraidamente como se fôssemos dois colegiais à porta de um play stationde um centro comercial qualquer. Uma sensação de dever cumprido e de trabalho bem-feito tomou conta de nós. Pude ver o quanto era linda e próspera a paisagem rural da Fazenda Boa Esperança ali repleta de gente simples e animais bem alimentados. As moitas de café pareciam uma rasteira grama, escorrendo pelas ladeiras do outeiro ao meu lado, como um véu verde que descia pelo dorso de uma bela e fértil mãe africana. O estresse do crespo diálogo travado com o Sr. Habimana produziu efeitos fisiológicos em meu interior e uma vontade louca de urinar começou a me incomodar. Comecei a pressionar as pernas, uma em outra, comprimindo a bexiga. O médico percebeu meu mal-estar, quando eu não mais prestava atenção aos seus comentários e me indagou:
— O que foi, Dra. Isabelle?
— Dr. Mike, precisamos retornar, por favor.
— Voltar por quê? Esqueceu algo lá?
Ele não desejava rever tão cedo o fazendeiro. Calculava que nossa presença novamente naquela moradia, na ocasião, engendraria efeitos negativos em relação à nossa demanda, tão debatida.
— Preciso urinar, doutor. Dá para entender isso?
— Por que não utilizou o sanitário da residência dos habimanas? — Falou-me em tom de reprovação.
— Simplesmente, porque somente agora senti precisão de urinar!
Para minha contrariedade, ele se recusou a dar meia-volta no veículo e retornar à Fazenda Boa Esperança. Propôs-me que urinasse, por ali mesmo, no mato e, para me encorajar, com aquele jeitão inoportuno dos homens, agravou a situação, dizendo-me que faria o mesmo.

Pois quando um inglês urina os outros urinam também!

De início, achei ridícula e até deselegante a sugestão, entretanto lembrei-me das festas de final de ano, nas quais, em grupos de jovens, fazíamos muitas loucuras do tipo, após animadas comemorações e drinques noite adentro. Desci do veículo e me dirigi à brenha com extremo desvelo, não querendo imaginar o transtorno de ser surpreendida desnuda por algum trabalhador daquela possessão
Não sei se me afastei do veículo além do que deveria, porém, quando estava acocorada em um cantinho ermo do matagal, ouvi um burburinho que se encaminhava em minha direção. Percebi, para meu desespero, que a três metros existia uma trilha estreita por onde as pessoas do local cortavam caminhos entre as trilhas do lugar. Fui silenciosamente para trás de uma barreira e fiquei escondida por uns arbustos, olhando na direção de onde vinham aquelas vozes cada vez mais próximas. Pude enxergar claramente um grupo de oito milicianos da Interahamwe, que parou perto de mim. Liderando-o estava o meu conhecido Canisous Rubuga a conversar animadamente com o Sr. Habimana. Os rapazes do grupo, todos jovens hutus radicais, estavam alvoroçados, como se estivessem sob o efeito de drogas ou álcool. Pareciam formar um grupo de punks na Champs Élysées ou de hooligans nos pubs ingleses. Alguns deles amolavam com pedras suas facas de bolso e testavam a seguir os fios das lâminas dos seus facões, ensaiando-os para um lado e para o outro, derrubando galhos, como se cortassem manteiga. Fiquei amedrontada.

E se resolvessem capinar a moita onde eu estava?

Não seria uma boa coisa ser encontrada por aqueles marginais despida na campina. Percebi que estava com um belo problema e entrei a suar frio e tremer as pernas. De repente, fiz um movimento brusco, fruto de um desequilíbrio momentâneo e uma pequena pedra rolou ladeira abaixo. Para minha ventura, o barulho chamou a atenção de apenas um dos hutus, mais forte e alto que os demais. Ele olhou fixamente na direção de onde o som partiu e seus olhos apontaram diretamente para os meus. Eu gelei abruptamente, pois acreditava que seu olhar percebia o meu. Ele caminhou para o local onde eu estava, atenta e curiosamente. Quase que me antecipei e me apresentei de vez, dizendo algo do tipo:

Olá, muito prazer. Eu me chamo Isabelle e estou aqui nua escutando a conversa de vocês sem querer!

Achei que havia algo estranho naquela cena. Sendo assim, não me senti segura o suficiente para me mostrar aos hutus da Interahamwe e, enquanto eu ouvia o som das suas botas quebrando gravetos pelo chão acima de mim, eu me escorregava um pouco para baixo até me esconder deitada por trás de uma formação vegetal, posicionada em um nível abaixo. Podia vê-lo por uma frincha entre as folhagens por sobre minha cabeça. Entre mim e ele existia um oportuno arbusto. Ele olhou para todos os lados, inclusive para baixo, e atiçou a audição concentrando-se como um guepardo que procura um filhote de gazela-de-thomson que estaria agachado e camuflado na Savana do Serengueti. Desembainhou seu facão e fez um ritual qualquer com sua lâmina, roçando-a na perna direita, pressentindo ação. Pareceu-me que farejara, de forma tênue, o meu perfume em meio a tantos odores silvestres, contudo não o associou a um ser humano. Também, nenhum animal possuía tal cheiro produzido pela minha seiva de alfazema misturada com café, lama, estrume de vaca, e urina, que involuntariamente escorria por minhas pernas. Mesmo assim, ele se encheu de dúvidas e curiosidade. Prostrou-se em guarda, prestes a lançar seu machete, e, como um hábil predador, ficou instintivamente no limite de dar o passo certo para me pegar. Contraí meus músculos e me preparei para receber o choque, mas uma salvadora voz de comando livrou-me do provável golpe do miliciano.
— Ei! Você aí! Venha escutar as orientações. Tua mãe não lhe deu educação, safado?
Canisous Rubuga advertiu-o grosseiramente, como se gesticulasse para um cão. Achou uma tremenda indelicadeza da parte do seu subordinado afastar-se sem autorização do grupo que escutava o cafeicultor. Ele veio em direção ao rapaz e de mão aberta deu-lhe um tapa na cara, para que todos vissem o castigo e escutassem seu som estalido e pedagógico.
Fiquei imóvel como uma pedra, para não ser percebida por mais ninguém. Imaginava o que aquela gente tanto falava. As palavras chegavam altas aos meus ouvidos, no entanto, eram distorcidas pelos ruídos de facões sendo amolados e de risos de mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Falavam depressa numa kinyarwanda incompreensível. Eu somente conseguia entender um pouco do idioma, se meu interlocutor se esforçasse para ser compreendido por mim. Se, ao menos Dr. Mike estivesse ali, eu saberia sobre o que conversavam. Saí esgueirando como um ladrão, para não ser percebida por eles. Não podia permanecer um minuto sequer naquele lugar. Temia que o inglês viesse me procurar descuidadamente ou gritasse o meu nome. Ao chegar ao veículo e, após termos nos afastado o suficiente para eu estar certa de que ele não retornaria, por qualquer motivo, contei-lhe o ocorrido e lhe perguntei o que aqueles fanáticos hutus armados e sinistros estavam a fazer na propriedade do Sr. Emmanuel.
Ele me explanou:
— Os hutus provavelmente buscam dinheiro.  Extorquem-no sempre e, mais uma vez, estão dando um bote na fortuna do cafeicultor tutsi.
Eu contra argumentei.
— Pareceu-me que eles tratavam de um assunto importante em uma conversa amigável.
— Ah! Ah! Ah! Amigável? Uma conversa entre um tutsi e hutus da Interahamwe? Você estava com muita necessidade de urinar, por certo.
Dr. Mike, alegremente, começou a cantarolar músicas dos anos sessenta e setenta do século XX, dos tempos da contracultura e do auge do movimento hippie do qual participou. Apesar da seriedade do seu trabalho, de algum modo, ele apresentava o jeitão despojado das pessoas daquela época. Ele seguia pilotando e cantando, com sua voz entoada, músicas de Jimi Hendrix e Janis Jopplin. A meu pedido, cantou a minha canção preferida da cantora: “Me and Bobby Maggee”, após assobiar “Johnny B. Goode” de Chuck Berry. Não esqueceu, evidentemente, de tributar acordes a Bob Dylan que, segundo o menestrel, era seu amigo de longas datas. Percebi que, no embalo da ocasião e no desenrolar da conversa, se eu desse um pouco mais de ouvidos àquele violeiro de botequim, dir-me-ia que alguma daquelas músicas era da sua autoria.
— Pegue um uísque no porta-luvas, Dra. Isabelle! — Pediu-me animado.
Segurei um litro de Johnny Walker e servi-lhe uma dose generosa, não antes de tomar os meus próprios goles no gargalo. Por uns bons minutos de viagem, subindo e descendo serras, que se viam envoltas por um céu pontilhado de estrelas, as quais escoltavam a lua mais cheia e luzidia que vira em toda minha vida, bebemos e cantamos, celebrando a fortuna twa. De tão grande que era, parecia que a lua estava logo ali no topo de cada morro, pronta para ser acariciada por um toque de minha mão, assim que a Land Rover alcançasse o cume de qualquer colina. Lá com minhas ideias, eu me perguntava se não estaria a lua tão próxima apenas para nos bisbilhotar, ao iniciarmos nossos rituais de amor. De qualquer modo, não me importava o quanto a lua intrometida e ciumenta visse ou soubesse de nós, pois na ocasião aquele homem era meu e de mais ninguém.
A certa altura da viagem, Dr. Mike parou a picape, desceu e fez uma rápida fogueirinha, a uns dez metros do caminho, não antes de me convidar para sentar com ele e iniciarmos um segundo Johnny Walker doze anos. Ele pegou um pedaço de queijo de leite de cabra da FBE, enfiou-o num graveto e o assou na fogueira, por meio do calor, com extremo cuidado para que não ficasse tostado pelas chamas altas. A fome, que me sublinhava a urgência, foi enganada ou saciada com uma parte do crestado petisco e tornou quieta para algum lugar dentro de mim, aguardando sua vez. Ele pegou da viola de dentro do veículo, tangeu-a firme e intimamente, como se acarinhasse uma amante, e me fez a mais doce das serenatas que eu poderia imaginar que existisse na mãe África naquela noite.
Depois, Dr. Mike se levantou calmamente e me olhou com uma suavidade penetrante e íntima, como se usasse os meus próprios olhos, os quais eram espontaneamente mais seus que de outro alguém. Com uma sequência de gestos sedutores, ergueu-me para o encontro do seu busto, de modo tão terno, que me propiciou a sensação de que somente ele sabia me tratar daquela maneira, pois nenhum outro homem jamais me fizera algo igual. Encostou-se na Land Rover, puxou-me para junto dele e abraçou-me por trás, enleando-se à minha alma. Roçou seu corpo quente contra o meu que, em meio a tal encanto, se ofereceu, sem resistência, como um artigo em promoção. Beijou-me o pescoço, puxou os meus cabelos e me acarinhou por inteira, com mãos buliçosas e mornas como compressas. Mordiscou-me as orelhas e me galanteou aos sussurros com arrulhos de um pombo enamorado que pousara sobre mim. Assenhoreou-se do que em mim restava inviolado, ao derrear-me o dorso e me fincar impiedosamente a sensação de tal domínio. Elevou-me aos extremos da minha intimidade que já ia rendida, consumida e espalhada pelos reverdecidos campos ruandeses.

Quando senti sua audácia aumentar por todas as partes do meu corpo, iniciamos a prática de dar e receber submissos a grande encanto. Por fim, algo verossímil iluminou-me o porquê de tal ardor e pude, finalmente, no instante do íntimo prazer, no meu limite entre corpo e espírito, tocá-la e perceber o significado daquela lua ou a consequência do seu fascínio sobre mim: a lua que com feitiço me fizera enamorar, descia a colina ávida de me sufocar em êxtase, ao me transformar no turaco apaixonado que o meu amado queria preso da gaiola na estrada de regresso à Kigali. O espaço inteiro à minha volta se encolheu, espremendo-me contra o suor do meu amante e a lua tampou a abertura para o mundo sobre mim. Em minha submissão claustrofóbica, percebia quão sensual e sufocante é o amor de um casal de pássaros engaiolado.

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As Flores de Ruanda - Capítulos de 1 a 6

Rwandese Flowers - Chapters 1 to 6

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