Textos Avulsos

Zé Noel
Por Adelson Costa


Nicolau era um sábio alquimista doutorado no á-bê-cê secular. Acumulava sabedoria, ao correr dos dias, que contava em sementes de umbu atiradas à caatinga do Sertão.

Nada compartilhado permanece igual!

O vetusto peregrino soube interpretar no sertanês este anexim filosofal, que, por outra conta, facilitou-lhe previsões arrazoadas. Palavreado tão finório dilatava as pupilas de romeiros pelancudos esvaziados pela subnutrição.

Olhos grandes são portas abertas à razão ou sintoma da inanição!

Seu Nicolau era profeta das bandas de Juremal, condado diminuto do tamanho do azar de não poder crescer. O vidente envelhecido tinha conforto a quem sofria por injustiça ou da razão. Por isto, arrebatou seguidores e fez devoto um rebanho de desenganados.
Seguia-o, também, Zé, que nada mais era que um puro-sangue zé com cheiro de bezerro, liado a lombo de jumento e atolado em bosta de boi-bumbá. Um rapagão nubente sem saber por guia, apaixonado por uma cunhã mestiça e arredia.
— Mestre Nicolau! — Zé, aferrado à sua angústia, esperava que o adivinho tragasse do cachimbo e soprasse um fantasma por volutas de fumaça em que se via a imagem da sua índia fulniô.
— Achegue-se, meu filho, e avie-me seu querer.
Zé divisou esperançoso, no vidente iluminado, a solução da tal premência, pois, melhor socorro não sabia onde ter. A ferida era-lhe n'alma e o sofrer do seu amor.

Jaciara, amada de fartas curvas, brejeira de tanta arte, pecado de tal ardor!

O varão enamorado chorou seus chifres e expiou profunda dor. Nicolau, abastado de erva, serenado que nem urubu-rei, encarou o caboclo e auscultou-lhe a aflição.
— Já lhe disse que largue a cunhantã!
— Melhor apartar-me o viver.
— Zé do Garrote, a paixão é feito o lumiar. Senti-lo é o atesto de viver, mas prendê-lo é fazer escurecer. Deixe que a herege vague, permita que o vento vá!
— Meu Senhor, Virgulino ressurgido, Conselheiro retornado, atire-me à fé. Solução há de se ter.
Diácono Nicolau divisou o céu abobadado, sua fonte de saber. Escutou o falar dos mudos e, condoído, professou de supetão:
— Tu e Jaciara em outra vida hão de se entender! Não neste apontamento averbado e desassossego consumado.
— Mas quando, meu Senhor?
— No próximo girar da roda, no expirar do tempo, ao explodir o firmamento.
— Por quantas horas, quantos dias, por quanta dor?
— Após o alargar do céu, mais além do fim do teu amor!
— Meu profeta Nicolau, me ponha em provação! Pelo pecado de Jaciara pago eu. O gostar da libertina assunto é meu.
Mestre Nicolau, indignado com tamanha insistência, resolveu atolar de reflexão o oco daquele coco, atarefando-o de insensatez. Dois impossíveis juntos é apenas o impossível em si só.
— Zé do Garrote, descrente de causa vã, as formas de Jaciara não se encaixam em teu eu. O doce daquela uma é de ardiloso fel. Só haverá contento para essa teimosia quando tatu criar asa ou eu vir Papai Noel na noite do esplendor.
O velho resignado ajustou-se ao penedo, bocejou entediado e se inteirou da seguinte mediação. Zé do Garrote, regresso à bosta morna de todo dia, matutou abobalhado, sem lembrança de outro dito escutado do tal de Papai Noel!
— Ele avoa, Zé! — confidenciou-lhe um irmão.

Pelo amor de Jaciara, hei de voar!

Ele soube do Natal avizinhado, da labuta do velhinho avermelhado e dos presentes dados. Das viagens por sobre a noite sertaneja e da carroça a cabra voadora. Percorreu as feiras de Remanso a Chorrochó, mas não achou sequer um único bode de trenó. Zé tinha um jegue, uma vaca malhada e o céu sobre o juízo. Montou charrete com galha de jurema e se pôs a praticar.
Correram os dias, como haveria de acontecer. O Natal anoitecia. O burro e a vaca, arreados em cabresto, aguardavam avoar.
Zé fez pião, carro de lata e dominó. Jogá-los-ia do baixinho, para dano não causar. Escalou a ribanceira mais alta do lugar e intentou decolar.
O povo avexado correu para intervir.
— Mestre Nicolau, o garoto endoidou!
Tropel de almas barulhentas e nervosas acudiu ao abismo natalino. Já era tarde e muito vão. Zé do Garrote, encarnado a colorau, atiçava a nelore e o jegue turrão, que teimavam em não saltar.
— Desce daí, tu vás morrer, condenado! É noite de natal, excomungado!
Zé olhava o povo do barranco, mas não viu Jaciara, sua cabrocha de outro gosto, sua paixão com outro rosto. Ho, ho, ho, hooo... decidiu pular...
O vento despencou-lhe o chapéu, atiçou-lhe a cabeleira e entortou o pobre burriquinho. A mimosa fez um mooon!

Zé Noel pôs-se a voar...

Passaram dias, correram eras. Caititu virou morcego, as cunhãs criaram rabo e os cornos desembestaram para o mar. O Sertão virou gelo para depois se desmanchar. Pegou fogo no último pipoco do mundo, que o refez em outro lar.


Tudo se foi, modificado, exceto a lembrança do amor de Zé por Jaciara, por impossível de mudar.

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